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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Voltando das férias


O vilarejo dormia um sono silencioso e reparador. Os pequenos camponeses se preparavam para colher arroz, feijão, milho e mandioca para garantir a subsistência da família. Na cidade, poderiam vender o excedente e comprar alguma calça, aquela blusa em promoção e trocar o sapato, cuja sola gasta revelava a aspereza das pedras onde pisavam. A amendoeira, o pé de cedro, a espada de São Jorge e o jasmim branco não sabiam de nada disso, apenas conviviam pacificamente com um arado incompleto na frente da pousada de uma ou duas estrelas, se tanto.

As pessoas do quarto, com a lâmpada acesa, faziam as malas para uma viagem que esperava pelo amanhecer, essencial como um copo de água no sol quente do meio dia em tempos de termômetro arrebentando de febre. Sobre o criado-mudo restaurado, havia incenso em permanente atividade. Acima da porta, do lado de fora, uma gaiola sem porta e livre de boa parte de uma das paredes dizia que naquele lugar a liberdade sempre dominaria a cena – era essa a filosofia reinante, espécie de cláusula pétrea.

Os ponteiros do antigo relógio da sala mostravam as horas: 06h10. O casal foi tomar o café da manhã, naquele dia, bem mais cedo.

Aquela noite, havia sido tomada por um inverno rigoroso, a geada torrando as plantações mais delicadas e sacrificando os pequenos animais recostados sob a mangueira que jogava de um lado para outro as suas folhas, à disposição e ao gosto do vento fino e congelante.

O novo dia não tinha semáforos, nem sirenes, nem relógios apressados, nem gente atrasada; apenas uma urgência era urgente naquele cenário com as questões que nada exigiam da mente e dos nervos dos seus habitantes: viver.

A viagem de volta das férias estava marcada e ela devia respeitar horários rígidos; o avião era intolerante e bateria asas no horário marcado, precisamente às nove horas e quarenta e cinco minutos, tempo contado no relógio, que também não se atrasava. Helder e Chiara ensaiaram a saída da pousada.

– Nessas horas, cabelo encaracolado tem lá as suas vantagens... Continua encaracolado, apesar do vento – disse Chiara.

– O meu bagunçado vai continuar bagunçado! – respondeu Helder – E o vento mantém o cachimbo aceso, ponto pra mim – disse, sorrindo. Seus lábios arqueados se ressentiam de tanto frio.

Helder era dono de um denso repertório cultural, trazido de escolas de renome. Na manhã silenciosa, falava baixo, quase como se confessasse segredos para a sua mulher.

Suas palavras eram exatas e ele praticava com segurança a arte da assertividade. Mas também amava jogar com o significado de certas expressões, e neste oceano se divertiam, enquanto trocavam emoções e cuidados mútuos.

A esposa falava menos, ou falava muito mais, por meio da linguagem compacta e repleta de nuances. Por vezes, brincava com frases curtas, geralmente de duplo sentido. Ela se deliciava em brincar com o sentido possível de cada expressão, porque sabia muito sobre cada uma delas. Não se separava dos livros e jornais.

Mas nem sempre isso dava certo. Por vezes, a conversa entre o jovem Físico e a escritora de ficção produzia choques evitáveis, sem contar que nas questões mais sérias e urgentes costumava gerar mais calor do que luz.

Chiara estava pronta. Helder estava pronto. As malas estavam prontas. A pequena estrada que os levaria até onde tomariam o primeiro ônibus para alcançar o aeroporto a exatos 67 quilômetros dali também estava pronta.

Mas havia um desafio, e ele assombrava a força e coragem de Helder: uma ponte, uma longa ponte, único meio, sem desvios, para se chegar do outro lado e entrar no ônibus que os levaria até o aeroporto.

A cada novo passo, as pernas de Helder ficavam mais pesadas. A cada novo passo, agora tendo a ponte a sua frente, suas pernas aumentavam a intensidade dos sinais que falavam de rejeição e desejo de ficar ali mesmo.

Mas eles seguiram. Seguiram mais um pouco. E lá estava ela, a ponte, agora bem perto, ali mesmo, o cimento como um tapete que os levaria para o outro lado, caso Helder sobrevivesse. Chiara via apenas uma ponte, como tantas outras. Para Helder, ao contrário, tratava-se de um monstro que o devoraria, depois de facilmente vencê-lo pelo medo.

Era preciso decidir: enfrentar o desafio, atravessar e seguir viagem, ou refazer o caminho até a pousada, residência em tempos de férias, e jogar fora a promessa de trabalho que mudaria suas vidas, permanecendo ali até que os céus enviassem um helicóptero salvador em missão de resgate.

– Vamos, Chiara, eu vou atravessar a ponte. Vamos logo – disse, desejando parecer determinado e procurando a aprovação da esposa e do universo.

– Vamos, vamos sim, mas “vamos”? Tem certeza? – disse Chiara, testando o marido.

– Sim, é claro que vamos, vamos em frente! – disse Helder. Mas os seus passos arrastados, dentro de um par de sandálias compradas no Chile e jeans desbotado, testemunhavam contra tudo isso. A conferir. – Droga! Esqueci-me de pegar o litro de mel e recolher a rede! – disse, talvez para disfarçar o extremo desconforto psicológico do momento.

– Bem, então vamos. Ponte, aí vamos nós, aí vai Helder, vencer a sua imponência – disse Chiara, fazendo humor.

– Ponte, seus dias estão contados! Seus dias estão contados, eu vou te vencer, espere só um pouco, espere... – disse Helder, as pernas insistindo em contradizer as palavras.

Colocaram-se a caminho e Helder repetia a frase, que bem poderia se tornar um mantra, mas fisicamente demonstrava uma fraqueza crescente a cada novo passo. E a ponte estava lá, dura, inerte, fria, ignorando aquela onda de coragem que parecia feita de sal embora desejasse ser de concreto e ferro.

– Vamos lá, meu amor, a hora é agora. Você precisa devorar essa ponte, engolir cada centímetro dela – disse Chiara, convocando-o a seguir.

– Engolir a ponte, ficou louca? Roteiro do novo livro? – disse Helder, tenso.

– Sim, meu querido, foi isso que eu disse, “engolir a ponte”, vamos! – disse Chiara. – Ou você acaba sendo engolido por ela.

Um menino se aproximou, ele e sua bicicleta, uma pobre bicicleta velha, que ainda aceitava levá-lo até a escola de lata, plantada há meia hora dali.

O garoto parou e olhou para o casal. O casal parou e olhou para o menino. O menino seguiu em frente.

– Ei, garoto! – gritou Helder, tentando não assustá-lo, mas assertivo o bastante para não perdê-lo de vista.

– Sim senhor, moço... – disse ele, ajeitando a mochila puída que ameaçava cair.

– Quanto você quer pra me dar uma carona? – disse Helder.

– Uma carona? Pra onde? Eu vou pra escola – disse o garoto.

– Uma carona até o outro lado da maldita ponte. Eu pago, pode falar, eu pago – disse Helder.

– Mas não cabem os dois... – explicou o menino.

– Tudo bem, eu passo e depois você leva minha mulher.

A pobre bicicleta cumpriu sua nova tarefa, arrastada pelo garoto e procurando adaptar-se ao desafio do momento. Mas, chegando do outro lado, a roda traseira fez um barulho estranho, e aquele ruído era o seu grito de agonia. Travou.

Enquanto isso Chiara esperou. Esperou. Esperou. E enfim chegou do outro lado, ela, suas malas e um joelho ralado, que o macacão não teve como evitar. Mas o ônibus já não estava lá. O avião também não estava no aeroporto. E a oportunidade de um trabalho na metrópole havia se tornado poeira fina.

Enfim, chegou um carro, transportando duas galinhas, um coelho e um porquinho ruidoso. O motorista lhes deu carona. E então Helder e Chiara iniciaram uma longa viagem até outra cidade, onde encontraram um pequeno restaurante aberto.

Faltava decidir o que fazer depois da refeição.

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