Marina pegou o secador de cabelo que esperava por ela no sofá, ao lado da gargantilha vermelha escalada para ocupar seu pescoço naquele dia. O incenso entregava o aroma de sândalo.
O cabelo ainda estava por ser esculpido. Mas não foi nada trabalhoso demais.
Ela pegou um envelope sobre a mesa da sala e desceu para a garagem do prédio, encravado numa rua pacata de um bairro com vida noturna bem-comportada e dias onde reinava o silêncio intenso.
O trânsito não tinha pressa, ele apenas pedia “calma, pessoal, calma, devagarzinho eu levo todo mundo, calma”. Pouco a pouco, ele andou, andou e parou e andou novamente.
No carro, Marina ouvia o noticiário daquela manhã. A guerra continuava, agora mais intensa. As queimadas queimavam as chances de um futuro para o único planeta de que dispomos. E também houve tumulto no campo durante a partida em que torcedores acreditavam que o chute do adversário foi proposital e o juiz deixou pra lá, estava com pressa de voltar para casa.
No semáforo, a criança faminta pedia dinheiro para comprar um salgado, seu almoço, ou seu café da manhã, ou o jantar de ontem, sabe-se Deus.
A livraria já estava aberta. O gerente nunca se atrasa, nem os clientes, muitos deles habituais, na sua busca por mais cultura e soluções para os problemas que se renovam na vida pessoal e no trabalho, às vezes na escola.
Thales chegou um pouco depois, um velho amigo que se ocupava 24 horas com problemas sociais e, nas horas vagas cuidava de algumas plantas, da grama verde do seu quintal e fazia Sudoku. Ele precisava saber mais sobre o comportamento do bicho-homem dentro de um grupo social. No mais, desejava levar novos conhecimentos para os seus alunos no curso de mestrado. A dissertação apresentaria um buraco imperdoável sem as novas conclusões a que especialistas renomados chegaram a partir de uma série de pesquisas.
Ele se fez anunciar para Marina. Estava por aí e desejava tomar um cafezinho com a velha amiga, colega de bancos escolares e quase uma parceira no uso de alianças na mão esquerda.
– Oi, Thales, que bom que você veio.
– Oi, Marina, tudo bem? Tem um cafezinho esperando pela gente ali mesmo. É por minha conta – seu rosto meio arredondado ameaçou ficar vermelho.
– Se você paga, então eu aceito. Mas tem de ser com chantilly, tudo bem?
– Tudo bem, do jeito que você quiser. O próximo é por sua conta – ele deu a mesma risada.
O cafezinho chegou, o chantilly se derreteu todo na boca de Marina, que imprimiu na borda da xícara o batom carmim dos seus lábios estreitos. As palavras ficaram por aí, circulando enquanto se organizavam. Uma livreira e um sociólogo conversando e dizendo coisas imprecisas, isso era impensável.
Falaram sobre livros. Falaram sobre o lançamento, ainda sem tradução por aqui. Falaram sobre erros conceituais que Thales encontrou num livro considerado acima do bem e do mal por especialistas. Falaram sobre como andava o mercado editorial, agredido pela queda na procura por alguns assuntos, e a tecnologia da informação roubando o espaço conquistado com suor pelas livrarias. Falaram da situação deficitária na educação e do pouco investimento para pesquisas. Falaram de quase tudo, e a Rússia continuava investindo contra a Ucrânia e a ONU estava novamente reunida. O papa renunciaria? “Me deixa fora disso”, teria sido o comentário feito pelo Criador – diria alguns.
Vera precisa falar com o gerente da livraria, mas ele havia saído. Talvez tomasse um cafezinho, e talvez encontrasse Marina e Thales, algo por acaso. Se o acaso colaborasse, Vera aproveitaria para fazer algumas perguntas à Marina e sair de mansinho, recolhendo-se à sua sala e sua mesa abarrotada de vazio – tudo estava bem guardado no sistema.
Marina não disse nada, apenas olhava para o lado, impaciente com aquele pequeno grupo de pessoas que chamava sua atenção de maneira especial.
– Gostei da sua boina azul. E aí, Thales, como está o seu novo livro? Pronto?
– Sim, prontíssimo, agora preciso encontrar uma editora interessada em publicar.
Ele dava uma informação que não valia em si mesma, e esperava sutilmente pela indicação de um nome. Marina sabia quem publicava que tipo de literatura e as que se sentiam confortáveis por terem conquistado a preferência do mercado leitor.
– Que interessante, tenho certeza de que você vai encontrar uma, eu sei que vai.
– É, eu vou...
– Já tem alguma em mente?
– Não, não tenho. Primeiro preciso saber qual seria a mais adequada para o meu tema, a mais respeitada, confiável. Alguma especializada em publicação de Sociologia.
– Em geral as grandes editoras são mais confiáveis, senão não teriam crescido tanto.
– É. Não sei se acredito muito que as coisas se relacionam, mas é isso, melhor ficar com uma grande e confiável.
Thales pagou a conta. Marina agradeceu à balconista. Os dois se despediram, Thales precisava encontrar uma editora, daria uma volta pela livraria para ver as estantes, que poderiam sugerir uma boa assinatura editorial.
O cardápio de marcas era variado, bastava selecionar algumas e começar sua busca, apresentação de originais, escritos em Word, Times, corpo 12 e espaço 2 e esperar pela chegada da resposta, sem prazo previsto.
Thales anotou alguns nomes e se encaminhou para sua nova busca. Enquanto algumas apenas ofereciam o próprio site, sem mais palavras, outras disseram que não estavam recebendo originais para aquele ano, ainda em março; talvez no ano que vem.
Enquanto isso, Marina seguia preparando o material que levaria para a celebrada Feira de Frankfurt. Para isso, contava com o auxílio de Vera, especialista em organizar a vida profissional da livreira que não deu uma resposta concreta a Thales quanto ao que ele precisava para viabilizar o lançamento de sua obra inédita. O medo crônico de lugares fechados, como só um avião sabe oferecer, fez questão de se manifestar como uma pequena comitiva nessa viagem internacional.
Direto da Alemanha, Marina trouxe vários títulos recém-lançados, ainda sem tradução prevista no Brasil, dentre eles algumas obras que certamente interessariam a Thales.
Logo nos primeiros dias, o sociólogo se deu conta de que os novos conceitos não poderiam ficar de fora do seu livro ainda quentinho e agora um pouco desatualizado.
Thales cancelou a ideia de publicar seu trabalho. Cancelou alguns itens da sua agenda. Debruçou-se sobre a empreitada de atualizá-lo, incluindo as novas descobertas, reveladas graças à sua amiga depois de voltar da Feira de Livros germânica.
– Oi, minha amiga, tudo bem? Olha, obrigado de novo pelos livros que você trouxe na sua viagem. Mas...
– Mas... – disse Marina.
– Mas junto da solução você me trouxe um novo problema – Thales disse, sorrindo.
– Problema?! Que problema?
– Assim que comecei a ler vi que o meu trabalho já estava desatualizado. Graças a Deus, infelizmente aconteceu isso. Graças a você também.
– Uma pena, Thales, uma pena, mas isso acontece, você sabe. Mas você vai conseguir, eu sei que vai.
– Claro, eu vou conseguir. E também vou conseguir uma editora.
– Claro que vai encontrar uma, eu sei que vai.
– Qualquer dia desses a gente toma outro cafezinho. Com chantilly.
– Claro, com chantilly.
Deixando de lado sua necessidade de conhecer pessoas, Thales entrou no modo “reclusão”, respeitando as interrupções impostas pela manutenção de condições mínimas de vida biológica e mental. Mesmo tendo a mania de pular refeições, o que lhe custou solenes puxões de orelha dados pelo seu médico.
A livraria de Marina recebia mais e mais leitores interessados em obras que nem existiam, apenas estavam na fila de espera por uma editora. ≡
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