Quando arabela chegou, o paciente já havia sido atendido pelo médico. Naquela manhã o Pronto Atendimento estava mais calmo, talvez não tenham existido muitos ferimentos, não tenham aparecido sintomas estranhos nem acidente de trânsito nem atropelamento. A vida não pedia cura imediata, apenas queria ser vivida na sua plenitude.
“Na volta para o escritório preciso ficar atenta à chuva, o céu não me parece muito amigo, acho que vou entrar com um pedido de habeas curpus” – Dra. Arabela pensou.
A pista estava escorregadia e as buzinas em sequência pediam passagem ao carro da frente. Fazendo um gesto lógico, o motorista sugeria que ele passasse por cima. Com as leis da Física ninguém pode se meter, dois corpos continuam não ocupando o mesmo lugar, o carro de trás precisa esperar o da frente, é do jogo. Ou passar por cima, e isso nada tem a ver com a ideia de superação.
Com ou sem as tais Leis, o corpo de Ronaldo insistia em ocupar o mesmo lugar na vida da esposa, gerente de uma loja de grife num shopping de classe média alta. Água e óleo não se misturam. Ronaldo era água com gás; a mulher, óleo quente, quase fervendo. Verdade é que essa relação mal resolvida abria o caminho para convidados e intrusos ocuparem os espaços deixados pelo outro.
Na Recepção do Pronto Atendimento, Arabela disse que queria visitar um paciente, aquele que sentia nos braços uma dor como as maiores do mundo, parecida com a dor de Jesus Cristo no Calvário – era exagerado o moço canceriano, uma coisa assustadora.
Ronaldo estava na Sala de Aplicações. Receberia uma boa dose de anti-inflamatório, o suficiente para conversar com as sensações e queixas relatadas por ele ao médico de plantão. Uma eventual radiografia não seria nada alarmante, havia pouco para ser constatado.
Antes de receber a amiga, o enfermo pensou em ambulância cantando pneu e sirene ligada em grande estilo, “saiam da frente, aqui vai o Ronaldo, saiam da frente, é urgente! ”, diria o veículo branco e vermelho, se repetisse o script do enfermo.
Frustrou-se, não era para tanto. Afinal, os profissionais da saúde não são exagerados, não desmaiam diante de uma gota de sangue e outros “micos” que preenchiam o prontuário médico de Ronaldo.
Num pequeno espaço do lado direito do corredor, uma balança olhou para Arabela, que também olhou para ela, que também olhou para Arabela, e tanto se olharam que nada aconteceu além da troca de olhares. Seu colar verde, com detalhes em madeira, nunca foi esmagado como naquele momento de recusa incerta. Era pegar e ter um choque de realidade ou desistir. Desistiu.
– Oi, amiga, que bom que você chegou, você fez falta, como sempre.
O tempo disponível não permitia muita conversa, a enfermeira que respeitava as pessoas acima de tudo precisava ser rápida para injetar logo a agulha, um pequeno e suave carinho pontiagudo para quem gosta, e com isso aliviar a maior dor do mundo.
Ronaldo endureceu o braço e procurou pela mão de Arabela. A agulha não se intimidou, avançou e chegou ao seu destino. Mas o corpo de Ronaldo não foi um bom anfitrião. A pressão foi parar lá embaixo, como se estivesse numa montanha russa. As vistas se turvaram e ele se ausentou. A atitude foi muito deselegante por parte de quem deveria ao menos convidar a agulha para entrar, sentar-se, tomar uma água, um cafezinho tirado na hora e, depois, fazer o seu serviço, deixando lá dentro o seu poder de cura.
Uma ambulância chegou e outra saiu, como numa coreografia. Mas ela não levava Ronaldo, que ficaria por aí, esperando que alguém da família chegasse para uma estrondosa operação de resgate quase sem precedentes na história. Mas a família pensou na personalidade do enfermo e apenas seguiu com calma, sem a pressa de uma ambulância em dia agitado.
– Pronto, meu amigo, agora está tudo bem? – disse Arabela.
– Está tudo bem. Sim, está tudo bem. Acho que tirei um cochilo, estava cansado.
– Sei, “estava cansado”, eu entendo – ela disse, morrendo de vontade de dizer o que de fato aconteceu. Mas o momento não era para falar em desmaio.
– Ontem fui tocar numa festa, cheguei tarde, joguei o saxofone no sofá e apaguei. Nem ouvi o ronco da minha mulher.
– E o que aconteceu durante o seu “cochilo”?
– Não sei. Só senti uma picadinha, acho que foi no braço. Bobagem.
– “Bobagem”, claro. Você estava cansado, eu entendo – a boca falava do que o coração não sentia.
– Não sei se entendi direito.
– Não entendeu o quê, Ronaldo?
– A sua cara. Justo você! Justo você!
– É a minha cara de sempre.
– É a sua cara de quem está curtindo com a minha cara.
– Sim, mas é a minha cara de sempre – disse Arabela, antes da gargalhada quase estridente que não teve como segurar. Procurava não demonstrar o quanto se sentia bem com ele.
– Eu gosto de ver você umedecendo os lábios. É sua marca registrada, sabia?
Ronaldo tomou todo o soro, sempre desejando a mão pequena de Arabela. Aos poucos foi sentindo que a dor havia tomado outro rumo. Como na conhecida canção, “O amor tem feito coisas”.
Hora de ir embora. Mas exatamente naquela hora seu irmão mais velho chegou, chegou calmamente, fez algumas perguntas na Recepção e foi até a Sala de Aplicações. Ronaldo estava saindo, ainda amedrontado, ainda com um pouco de tontura, amparado por Arabela.
– Oi, Arabela, o que houve com o Ronaldo? – disse o irmão tranquilo, enquanto seu boné caiu no chão sem que ele percebesse.
– Nada de mais, ele caiu da bicicleta, disse que foi fechado por um ônibus.
– Se machucou muito?
– Não, ralou a mão, o joelho e o cotovelo, e teve uma torção no braço direito. Mas já foi medicado, está bem, agora. Bem, o macacão já teve dias melhores.
– Meu irmão desmaia lendo bula de remédio, uma coisa louca. Então a gente nunca sabe...
– Vocês se encontraram para me caluniar, foi isso?
– Caluniar? Nós? É claro que não. Estamos muito preocupados com você, com a sua dor intensa. Nem consigo imaginar seu sofrimento, o sangue jorrando do seu corpo ferido... – disse seu irmão, teatralizando tudo para que ficasse dramático a contento de Ronaldo.
– Acho que alguém me entendeu.
– Sim, claro, todos aqui te entendem, a gente só não sabe como você conseguiu suportar.
– Bom, podemos ir embora, agora? Vou ficar de repouso, eu e o meu saxofone. Estou cansado.
– Claro que podemos. Vamos – disse o irmão.
Em casa, Ronaldo se jogou na cama, com a mesma roupa e a pulseira de identificação que recebeu no Pronto Atendimento. Arabela se despediu do enfermo e do acompanhante que a partir de agora assumia o plantão. A esposa estava trabalhando fora e depois ficou sabendo de tudo. Não reagiu.
Ronaldo roncou estirado na cama, era como se estivesse rosnando. O céu estava escuro, os termômetros se esforçavam para não ir além dos 39 graus e um forte trovão também roncou nos céus, como se disputasse o número de decibéis que conseguiam produzir.
Arabela foi ao Fórum, a audiência começaria em dez minutos, sem contar os atrasos de praxe. Quase na última hora se deu conta de que a pasta contendo todos os documentos necessários havia ficado no carro, muito bem guardado no estacionamento lotado.
Deu tempo de chegar a tempo e entrar antes do meritíssimo.
As testemunhas já estavam impacientes.
Entraram na sala do júri. Naquele dia o juiz demonstrava um bom humor que inspirava cuidados.
Arabela fez a defesa do seu cliente. O magistrado ouviu calado, enquanto fazia pequenas anotações. Certas experiências precisam ganhar espaço no papel, senão se perdem na perda de memória.
Por fim, o juiz deu o veredito. O agressor foi condenado a prestar serviços comunitários para refletir, enquanto trabalhava, que é preciso respeitar as mulheres.
Pelo menos até segunda ordem, a chuva havia parado de chover; eram as águas de março dando adeus ao verão e deixando um solzinho carinhoso para avisar que abril seria logo ali. O trânsito da vida não fica parado, por vezes fica lento, mas segue em frente. Arabela seguiu em frente.
Logo mais, à noite, Ronaldo chegaria para o ensaio, apenas como expectador, porque o encontro não foi Indeferido sine die.
Era preciso tocar em frente, deixando para trás os arranhões e torções, porque não podia desafinar. Menos ainda com Arabela. ≡
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