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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Abuso da falta de poder

Meu Deus, como havia gente naquela padaria! O aroma de pão saído do forno era aconchegante e convidativo. Talvez nem precisasse comprar nada. Bastava a possibilidade de fruir aquela sensação que falava de perto sobre experiências vividas na casa da avó, que todo santo dia comprava alguns, ainda quentes. A liturgia mandava passar logo uma generosa camada de manteiga ou requeijão e colocar uma fatia interessante de queijo prato. Tudo acompanhado por uma vitamina de frutas colhidas ali mesmo, no pomar.

Irmã Julia também estava lá dentro. Compraria pão e broa de Caxambu, sem pressa, porque não estava assim desejosa de voltar para o convento e entregar os ingredientes que fariam o lanche da tarde de outras freiras, inclusive da madre superiora que se apoiava sobre a experiência de mais de 73 anos de vida, 49 dos quais no ambiente conventual.

Quando Irmã Julia olhava para ela sentia ainda mais forte o medo de se tornar uma inválida ou coisa parecida. Seu temor de ficar presa ao espaço limitado por uma cadeira de rodas só fazia aumentar. Justo ela, que na infância gostava de frequentar a garupa do cavalo de seu pai - o animal bem-apessoado fazia inveja a outros moradores da pequena fazenda. Justo ela que podia correr por todos os lados, subir no pé de manga ou de abacate, brincar com o cachorro cheio de manias, todas compreendidas pela futura freira, agora assustada.

Giovanni levaria apenas uma garrafa de suco de laranja, além de uma baguete um pouco tostada, que comeria no caminho para a feira livre. A feira era livre; Giovanni não era tão livre assim; ele e Ir. Julia, a freira que exagerava no jeito calmo de ser e de viver, atraindo censuras e advertências, na maioria das vezes inúteis.

Naquele dia o preço do tomate e da alface estava pela hora da morte, era de fazer com que os clientes esperassem pela xepa. Mas Giovanni não poderia se demorar – se pagar, tudo bem. Sua mulher ainda devia fazer o almoço, com salada, levar sua menina para a escola, ir à neurologista para falar das sensações de apagão dos sentidos.

Claro, a médica bem poderia receitar medicamentos que viveriam em atrito severo com cerveja, caipirinha e taças de vinho. Naquele momento exato ela vivia uma dessas crises e não poderia se manifestar sobre o que essa história está contando, mais fruto da imaginação do escriba do que baseada em fatos reais, mas isso fica para depois.

Verdade é que quando chegou a casa, Giovanni encontrou a esposa com os cabelos cacheados em visível desordem e atarefada demais para falar com ele. O marido tentou; falou sozinho. Tentou de novo e outra vez falou sozinho, Parte 2 dessa série de eventos que se arrastavam já fazia algum tempo. Ela estava se recuperando de um novo apagão, quase uma perda de consciência, quase uma convulsão, quase uma queda. 

Sempre evitando usar certas roupas ou objetos pessoais que considerava “contaminados”, como carteiras, chaves e celular, Maurício não faltava um dia sequer ao compromisso de fazer exercícios para ganhar massa muscular. Ele tinha pavor da velhice, mas isso é do jogo, não há como evitar. Por isso, cuidar do físico havia se tornado algo religioso, tarefa cumprida diariamente, quase um louvor à própria saúde e bem-estar. Seu médico estava de olho no paciente que algum tempo atrás era um sedentário convicto, mas se converteu depois do início de enfarto.

Maurício pegou seu menino, que se esbaldava em todos os brinquedos do parque de diversão, esqueceu um pouco seu trabalho como biólogo e passou pela casa de Giovanni, a fim de combinarem como fariam para ir ao estádio no próximo domingo, dia de clássico, dia de muita oração no convento. Dia de testar a resistência espiritual de Irmã Julia. Dia de comprar aquele remédio que está terminando, outro que custa um rio de dinheiro e só não é mais controlado do que Giovanni. Os amigos até encontraram um jeito de driblar o tempo e fazer o encaixe de uma rápida partida de jogo de tabuleiro, um vício de Giovanni.

No pequeno aquário, ao lado de uma cristaleira centenária, os peixes andavam de um canto para outro, sem tomar conhecimento de nada, e o forno seria aquecido mais tarde para assar um bolo cremoso de fubá, já preparado. Na jabuticabeira, um bem-te-vi cantou, dizendo que viu tudo novamente.

Chegou o domingo e ele era até mesmo o Dia do Senhor. Mas Deus que tivesse um pouco de paciência, porque havia tantas coisas, havia agenda cheia de coisas que as tarefas da semana jogavam para um único e injustiçado dia da semana, justo quando tem jogo, tem missa em três horários, uma loucura. Tudo combinado, exceto a briga de torcidas, evento que seria decidido apenas antes, durante ou depois do jogo. Giovanni só não sabia ao certo de onde vinha seu impulso para a hostilidade, qualquer que fosse a situação; principalmente numa partida de futebol, com o adversário querendo envergonhar seu time.

O estádio estava cheio, repleto de muita adrenalina, disposição para revelar uma hostilidade crônica, seja lá por qual motivo e até por motivo nenhum. Giovanni era líder na área. Principalmente depois de ser hostilizado pela mãe que, apontando o dedo indicador para o seu nariz, gritou dizendo que ele nunca se esforçava para conquistar alguma coisa na vida. Diziam alguns que o moço queria apenas se alimentar da vitória do seu time, eternamente perseguido pelo juiz e pelas forças do universo, certamente adorador do adversário, dando-lhe vitórias incontáveis.

Giovanni defendia o brio, não queria ser visto como alguém incapaz de reagir a uma provocação. Mais ainda se viesse de algum torcedor defendendo até a morte o quanto um atleta é quase perfeito, não fosse por aquela pequena pinta que tem no braço direito.

Sua esposa se ausentou de casa, e isso não era uma crise; apenas devoção. Foi à capela do convento e comungaria o corpo do Senhor na missa celebrada por um velho padre, a eucaristia distribuída também por Irmã Julia, sem tempo de não ter pressa para entregar o Pão da Vida.

A religiosa sentia necessidade de segurança emocional. No mais, ela era devota da filosofia da não-violência, recurso que utilizava no relacionamento com outras irmãs e, sobretudo, com a madre superiora que, do alto do seu posto, arqueava a sobrancelha em sinal de desaprovação a qualquer coisa. Principalmente quando outra vez precisava comer pão frio no lanche das 15 horas, situação em que se lembrava de Jesus ao dizer que teve fome e ninguém lhe deu de comer. O sino havia tocado a mais de 15 minutos, anunciando que o lanche já estava servido. Mas Irmã Julia ainda não havia chegado para se juntar às outras religiosas. Ela precisava de orientação espiritual, uma advertência talvez, ou ser transferida para outro convento, mais austero, numa pequena cidade a 240 quilômetros daí – essas ideias passaram novamente pela cabeça da superiora.

O mundo continuou na sua dinâmica, o tempo não dando um tempo ao tempo, o relógio que se virasse para acomodar tanta agenda. A segunda-feira seria um novo desafio, com nova safra de pão quentinho, descanso para a feira livre, cuidados com os animais do zoológico e nenhuma ausência aos compromissos sagrados.

O jogo teria a duração de uma semana, sem intervalo. E o juiz não era injusto como a vida.

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