Era uma tarde sem grandes promessas, indecisa mesmo. Talvez chovesse. Talvez esfriasse. Talvez ela não fizesse nada, apenas guardasse a lentidão das horas.
Moacyr, um jornalista investigativo, foi novamente ao hospital. Levou consigo seus aproximados dois metros de altura concentrados num corpo magro e regular. Juntos, transportavam um cabelo castanho descuidado com estilo.
O jornalista precisava colher novos ingredientes para fazer uma nova reportagem sobre internações decorrentes da hidrocefalia, acúmulo de líquidos na cabeça, cujo excesso provoca danos nas estruturas encefálicas. E novos ingredientes não faltavam nessa grande árvore cheia de quartos e muitas salas barulhentas.
O prédio do hospital ostentava a arquitetura típica dos anos 40. Era cheio de imponência. Desde a Recepção havia riqueza de detalhes. Um por um, todos falavam de um grande empenho na hora de esculpir a escada, as portas e janelas em madeira de lei, o piso, as fechaduras, os balcões. Tudo naquela obra fazia pensar em um prato sofisticado produzido por chefs de primeira linha em cozinhas muito bem cuidadas.
Pena a qualidade de o serviço negar, sem nenhuma cerimônia, boa parte da elegância exposta no exterior. Logo no primeiro corredor, a cortina de um teatro horroroso, repleto e agitado, se abriu. A primeira cena mostrava a longa espera por uma resposta.
Há três horas e meia aguardando o momento de serem atendidos, naquele palco estavam Raquel, uma mulher de 26 anos, gestos agitados, passos curtos e voz aguda. Raquel contracenava com o marido, Santiago, vítima de hidrocefalia. Para estar lá, ele havia, novamente, se ausentado do trabalho. Por conta disso, tinha medo de entrar para a história da empresa como “Santiago, o Breve”.
Santiago estava dividido entre a consciência de que devia protestar, nas mídias sociais, e o risco de parecer muito contestador. Ele sabia muito bem o quanto essa atitude poderia criar problema para o seu currículo e carreira profissional. Engoliu o script ditado pela honestidade consigo mesmo e apenas repetiu palavras e gestos moderados. A ordem era não incomodar o seu público pagante.
Santiago sofria as consequências da doença. Convivia com ela à custa de longos movimentos de diplomacia. Elas chegavam cada uma a seu modo e seu tempo. O lugar? Todos. Em casa, nos grupos sociais, na igreja, na universidade, na empresa, nos momentos de lazer e por todos os cantos em que ele circulava. Nem o dia do casamento o perdoou.
A voz de Santiago e todo o ritmo do seu corpo davam um depoimento claro sobre uma luta que se arrastava, o inimigo ignorando todas as propostas de um cessar-fogo. A hidrocefalia sabe pouco do que significa a palavra trégua.
Devido aos sintomas e suas consequências, Santiago já havia sofrido prejuízos no desempenho de atividades corriqueiras quando estudante de Economia, apenas para lembrar fatos recentes. Além de perder uma boa oportunidade de promoção numa grande empresa do setor de artigos esportivos. Aos poucos ele havia se transformado numa pessoa que rápido demais daria dois passos para trás, bastando que o menor avanço não revelasse um espaço seguro o suficiente para ele.
Quanto a Moacyr, ele era considerado alguém que sabia demais a respeito daquela instituição, frequentada habitualmente por motivos profissionais. Tanto que Dr. Narciso, diretor, temia pelo resultado do jornalismo praticado por ele, sempre feito de muito espírito crítico.
Mais do que dirigir um hospital, o peso e os passos lentos de Dr. Narciso carregavam alguém que dedicava tempo e energia vasculhando qualquer brecha que significasse perigo, descuido por onde alguém perceberia o que não devia ser visto. Não por acaso, sentia que era preciso manter o jornalista sob uma vigilância velada e segura. Afinal, suas reportagens tinham o poder de revelar além do que poderia ser saudável para o desejo de faturar sempre mais. Os bastidores, sabe-se Deus como eram os bastidores daquela casa de saúde.
Moacyr sentou-se com Santiago e Raquel numa cadeira de plástico que nada faria de errado se ele ficasse atento e permanecesse quase parado e gravou uma entrevista. Falaram o bastante para levantar dados significativos sobre o estado de saúde de Santiago e suas consequências físicas, agravadas pelos desgastes emocionais provocados por todo o quadro de omissão pela saúde das pessoas, ricamente desenhado pela instituição.
Santiago conseguia sustentar uma conversa, mas até certo ponto. Estava com uma sonolência considerada excessiva e certa irritabilidade, algo meio constante, como constantes eram as consequências nos relacionamentos pessoais.
– Não sei se consigo me concentrar na conversa – Santiago disse a Moacyr.
– Tudo bem, eu falo – emendou Raquel, procurando mantê-lo confortável.
– Que outros sintomas aparecem por conta da hidrocefalia? – perguntou Moacyr.
– Dia desses ele estava muito desmotivado. E isso ficou pior porque na volta pra casa ficou meio perdido. Não sabia direito onde estava e o dia da semana – Raquel explicou.
– E o desempenho no trabalho? – perguntou Moacyr?
– Triste. Imagina o que é você estar numa reunião e ter um ataque epilético... – disse Raquel.
– O que essa água no chão?! – Raquel perguntou a Santiago.
– Me atrapalhei e o copo caiu – Santiago respondeu, as mãos trêmulas. – Sei lá, parece que eu não enxergava direito – emendou.
– Raquel, e quanto ao tratamento? – perguntou Moacyr.
– Bem, existem medicamentos que diminuem a produção do líquido, mas já estamos pensando em cirurgia. É por isso que estamos aqui – respondeu Raquel.
Nessa entrevista, Moacyr incluiu relatos sobre a dificuldade de conseguir atendimento para aquela especialidade. O problema estava, sobretudo, na falta de profissionais e de equipamentos adequados para atender os pacientes. Nem mesmo aqueles em que a doença se encontrava num estágio avançado e oferecia riscos de morte eram poupados.
O casal preferiu não se identificar. Era cauteloso, uma cautela estudada, estratégica. Sabia que era mais prudente abastecer um profissional da mídia e deixar que ele fizesse o seu trabalho do jeito e na hora certa.
Porém, mais cedo do que se podia imaginar, Santiago mudou de ideia. Aceitou revelar sua identidade e seu depoimento, citando inclusive o nome do hospital onde o atendimento era, no mínimo, precário. Moacyr não teve dúvidas. Usou esse conteúdo como abertura da sua matéria, dando destaque às falhas daquela instituição e de todo o sistema de saúde.
A emissora colocou a matéria no ar naquela noite mesmo. Em horário nobre. A conversa com Santiago e Raquel foi apresentada na íntegra.
Dr. Narciso, diretor do hospital, ficou furioso. Ligou para Moacyr. Fez ameaças. Em seguida, entrou em contato com a direção da emissora. E não economizou Henrique, do Departamento Comercial. Para ele, a ameaça explícita de nunca mais dividir o patrocínio de qualquer programa. Nem mesmo o comercial diário, em horário nobre, seria mantido. Encerrou a conversa deixando o lembrete de que pensava processar a TV por calúnia e difamação. E aquela não foi a primeira vez.
Acuada, a direção da emissora não teve saída. Precisou responder uma pergunta: manter o jornalista cobrindo a área da saúde e perder o faturamento de propaganda? Afinal, o dinheiro cumpria uma agenda com data certa para entrar e sair do caixa. Eis a questão ainda sem resposta.
Sem demora os diretores optaram pelo caminho que parecia ser o mais curto e de resultados imediatos. Decidiram tirar Moacyr do trabalho externo. Criaram para ele um programa no qual entrevistaria profissionais de diferentes áreas, inclusive da saúde, veiculado às sextas-feiras, precisamente à meia noite.
Moacyr não aprovou a decisão. Mas precisou acatar a vontade superior. Não havia outra saída, as portas do mercado de trabalho estavam emperradas naquele tempo de tantas mudanças no cenário mundial.
A ideia da emissora era fazer com que os entrevistados falassem de dificuldades encontradas no trabalho, não importava a área, e a maneira como solucionavam, criativamente, cada uma. Nada polêmico. Nada que pudesse gerar conflitos de interesses entre a mídia e seus anunciantes regulares. Parecia o prato perfeito.
Enquanto isso, outra emissora, que há algum tempo sondava Moacyr, finalmente lhe ofereceu um espaço na sua grade de programação. A proposta chegou garantindo autonomia para que ele fizesse seu trabalho, não bastasse o projeto ser muito bem comportado desde o nascimento.
Um mês depois, Moacyr tentou novo contato com Santiago, preocupado com o estado de saúde dele, que àquela época já inspirava cuidados – teria planos para uma nova reportagem? Tentou, mas não conseguiu ser atendido. Tentou de novo, e a ausência continuou, cheia de um silêncio constrangedor.
Enquanto vivia o novo momento, em outra emissora, uma grande agência de publicidade acenou com um convite para o jornalista.
– Moacyr, a gente acompanha seu trabalho. Você tem credibilidade no mercado – disse o diretor de criação, voz agitada. E prosseguiu:
– Nós temos um cliente, uma multinacional, que fabrica um medicamento contra hidrocefalia. E estamos criando uma campanha testemunhal para o produto – disse.
– Ótimo, gosto de saber mais sobre o assunto – disse Moacyr, ajeitando-se na cadeira de trabalho.
– A gente precisa de alguém com credibilidade, como você – disse o diretor de criação. Alguém pra gravar dois comerciais testemunhais para o produto. O cachê é bom, vale a pena pensar. A gente cria o texto e você interpreta para o telespectador – concluiu o diretor de criação, tentando seduzir o jornalista.
Por um instante, Moacyr vacilou. “O cachê é bom...”, “O cachê é bom...”, “O cachê é bom...”. Um eco muito forte estava plantado na sua cabeça povoada por compromissos e mais compromissos. Compromissos com o trabalho. Compromissos com a família. Compromissos com a escola dos filhos. Compromissos com as despesas de janeiro. Compromissos com tudo que se avolumava sem dó nem piedade até o próximo dezembro.
Moacyr não respondeu prontamente ao convite para se tornar garoto-propaganda. Apenas disse que pensaria na proposta. Verdade é que, não se sabe ao certo, o assunto saiu da agenda. Ou não. ≡
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