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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Um amigo pra não chamar de seu

Na praia onde Cristiano estava com Luna havia certa calma. Não tinha aquele mar de gente que se observa em algumas épocas do ano, embora o calor não se retirasse nem para dormir. Ele a convidou para acompanhá-lo até onde estava seu carro, estacionado a duas quadras dali. O veículo havia ficado à disposição de um guincho com mais atitude. E nada aconteceria por acaso: Cristiano havia desrespeitado aquela placa insistente na sua tarefa de informar que o local era proibido. Tratava-se de uma área reservada a viaturas militares.

Magro e em boa forma, dentro de um par de botinas com sola de borracha, por vezes Cristiano deixava Luna para trás – ela estava com uma rasteirinha que apenas combinava com a camiseta regata. Não era uma atleta.

O carro ainda estava lá. Deve ter sido protegido pela misericórdia divina – ainda não sei em qual delas Cristiano acreditava, com seu jeito ateu espiritualista, algo meio confuso. [Que mania besta a minha de querer entender os mistérios insondáveis da alma!]

Cheio de interesse, um policial observava o carro e parecia ter gostado da placa. Luna se apressou em dar algumas explicações e até inventar desculpas. Dessa vez ele entendeu. Ou, tolerou.

Entraram no carro e fizeram o retorno, como se estivesse numa pista de corrida.

– Eu ainda não entendi o motivo da sua rebeldia – disse Luna, ruidosa em sua gargalhada nervosa que tornava ainda mais bonito o seu rosto longo.

– Rebelde, eu?

– Sim, você mesmo, caro Cristiano. Deixar o carro no estacionamento do quartel, local proibido... – que loucura isso, rapaz!

– Eu não sou rebelde, Lu. Às vezes eu gosto de desafiar o perigo. Mas não me pergunte por que – disse Cristiano.

O professor de Educação Física, pouco afeito ao controle do pouco dinheiro pessoal, gostava mesmo de desafiar o perigo. Também gostava de explorar seus limites, na quadra, na piscina e, principalmente, nas ruas, sempre fugindo do risco de se ver dentro de uma multidão – seria por isso que gostava de correr muito, em busca de isolamento?

O problema é que por vezes Cristiano deixava de lado o fato de que também explorava os limites da lei. E é bom que se diga que “Dura Lex, sed Lex”, “a lei é dura, mas é a lei”, um provérbio que conheço de ouvir falar. Não sei se ele também ouviu. Não sei.

Cristiano e Luna eram amigos, eternos amigos, um dia poderiam ter aliança na mão esquerda e bodas de ouro, uma possibilidade da qual viviam fugindo. Não se sabe ao certo, talvez por falta de iniciativa, talvez sabe-se Deus por que – Freud ainda não divulgou nenhum relatório a respeito – não assumiam a essência do relacionamento.

Não se pediam. Não se comprometiam. Não oficializavam. A palavra namoro lhes parecia um pouco pesada, institucional, formal, coisas assim. Eram apenas amigos. Mais ainda porque fora do consultório, onde atendia casos complexos, sempre com as bênçãos de Jung e com um receio mal resolvido do sentimento de culpa, Luna atendia informalmente o velho amigo Cristiano, procurando manter sempre o antigo sorriso enorme e natural.

Para assinar um artigo, ela bem poderia usar esse crédito: “Luna é amiga de Cristiano, não namorada de Cristiano, psicóloga de Cristiano, em quem ele busca segurança emocional”.

Na pior das hipóteses, isso a afastava do tédio que por vezes insistia em abraçá-la. Mas ter um menino com 35 anos para cuidar tem lá os seus aborrecimentos. E não me pergunte por que diabos ela aceitou essa condição estranha. O caso está em análise.

Na volta, o carro tendo sido salvo de um guincho militar, passaram pelo supermercado. A geladeira de Cristiano estava cheia de espaço vazio. Logo o eletrodoméstico começaria a dar sinais de cansaço da sua ociosidade.

A loja era enorme, da mesma rede daquele que havia ao lado do apartamento de Ruy, velho amigo de tantas jornadas e noitadas, numa praia badalada a uns 120 quilômetros dali.

Era um belo apartamento com três quartos, duas suítes, duas vagas na garagem e quintal feito de uma areia branca, tapete natural para o desfile de gente bonita. Cristiano não se sentia um modelo e nada daquilo lhe parecia a sua passarela. Mas com alguma frequência aceitava o convite para um encontro aos pés da churrasqueira e de um cardápio pra lá de feliz, regado a uísque de alto nível, cervejas alternativas e alguns monólogos sobre classe executiva e compras em loja de grife do outro lado do Oceano.

O supermercado era o mesmo, como disse. A linha de produtos era a mesma. As pessoas não eram as mesmas. A conta bancária de Cristiano estava longe de ser a mesma. Os ouvidos de Luna eram os mesmos há tantos anos, e eles acumulavam um estoque de explicações, justificativas, tentativas erráticas e insistências de Cristiano – naquele mês o aluguel da casa do amigo estava atrasado.

– Sabe, Cristiano, eu fico ouvindo quando você fala do apartamento do Ruy no litoral. Como você descreve cada detalhe do imóvel, da praia... Você desmonta com as palavras, percebe? Fala como se falasse de um filho, que você ama e conhece muito bem... – é impressionante, sabe?

– Não entendi, Lu. Não entendi – disse Cristiano, tentando encontrar os olhos da cor de ônix da amiga mais do que amiga, estrategicamente distantes. Havia muito orgulho envolvido em tudo isso, mas dessa vez ele parou de insistir.

– Pois é, meu querido, eu também não entendo. Eu não entendo! E olha que eu me esforço, hein! – disse Luna, executando outra vez o ritual de arregalar os olhos e esfregar as mãos.

– Sim, eu curto o “apê” do Ruy. Curto mesmo, qual é o problema?! – disse Cristiano. – É um lugar super “manêro”, tá ligada? É a minha cara.

– Bem, acho que isso não explica tudo – disse Luna.

– Explicar o quê? O Ruy não sabe usar, pô! Deus dá asa... Comigo seria bem diferente! Sorte a dele que arrumou uma mulher rica! – deixou escapar.

– Sim, eu tô ligada. Você curte... Tem certeza de que é apenas isso? Tem certeza de que apenas curte? – Luna disse, agora deixando que seus olhos viajassem até os dele.

– Vocês, psicólogas... Eu não entendo vocês, sabia? – disse Cristiano.

– Meu amigo, não é a nós, as psicólogas, que você precisa entender. Antes de tentar nos entender, você precisa se entender. Aí é que está o ponto: se entender.

– Eu me entendo, Luna, eu me entendo! – respondeu Cristiano. – Você é que não está entendendo!

Mais uma vez ela o acompanhava em seus empreendimentos pouco adultos e nada ortodoxos. Luna não entendeu mais nada. Como tudo aquilo podia estar acontecendo, com a sua cumplicidade e nenhuma mudança à vista pelos próximos cem anos?

As compras no supermercado foram feitas. Mais do que antes, o preço dos produtos importados estavam pela hora da morte. O carrinho agora pesava mais devido ao clima relativamente pesado que tentava impedi-lo de circular entre as gôndolas, prateleiras que ofereciam tantas opções a quem tivesse bolsos recheados.

O Caixa informou o valor total da compra. Luna sacou do cartão magnético e, com as mãos tremendo, pagou a conta. De novo.

Depois de uma volta silenciosa e nublada, um pequeno beijo de despedida. Luna teria outro atendimento agendado para aquela manhã. Remunerado.

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