No metrô, dois jovens trocam informações sobre o futuro ingresso na faculdade. “O que você vai fazer?” – pergunta o primeiro. “Sei lá, Direito, Publicidade…” Não sei você, leitor, mas eu não me sentiria seguro, num tribunal, sendo defendido por alguém que fez um curso superior apenas porque, concluído o ensino fundamental, é preciso entrar na faculdade, em alguma faculdade, para ser algum estudante e ter algum diploma.
Onde está a fidelidade à vocação original? O que foi feito daquilo a que o teólogo Leonardo Boff chamou “opção fundamental”, indispensável quando se pretende viver experiências fortes de realização pessoal e profissional? São esses os ingredientes capazes de fazer com que o estudante, ainda no primeiro ano, consiga um trabalho efetivo, onde criará textos para empresas multinacionais. No final do terceiro, após a apresentação de um trabalho, seja convidado, pelo professor, para ensinar em uma grande universidade, na qual ele é também o coordenador. No final do curso de especialização, feito em escola de primeira linha, veja sua última prova publicada, como artigo, em um dos maiores jornais do país. E no final do primeiro semestre do mestrado, outra prova, de rotina, ganhe as páginas de uma importante revista. E vai por aí afora. E isso não é ficção.
Em outro canto, falando sobre a necessidade de trabalhar, alguém afirma, categórico: “Comigo não tem disso, eu pego qualquer coisa!” Pega qualquer coisa?! Não. No mínimo, porque toda empresa, mesmo precisando contratar, obedece a alguns critérios para incluir uma pessoa no seu rol de funcionários. E ninguém dispõe de todos os conhecimentos, habilidades, aptidões, certificações etc. necessários para todas as funções. Logo, a afirmação carece de consistência.
Criticando a febre da autoajuda, o historiador Leandro Karnal lembra que ao ler afirmações do tipo “Se você quer, você pode”, tem vontade de colocar o autor da obra no décimo andar de um prédio e sugerir que ele salte, sem paraquedas. Se não quer se arrebentar lá embaixo, ele pode evitar isso tranquilamente.
Da mesma forma, quando ouço coisas do gênero, da boca de um semianalfabeto, sobre o preenchimento de uma vaga no mercado de trabalho, sinto um rápido desejo de ver o candidato sendo conduzido até o aeroporto de Congonhas e desafiado com algo como “Está vendo aquele avião? Seus quase 200 passageiros pretendem viajar e chegar, com segurança, ao Rio de Janeiro. Temos uma vaga para piloto, e se você ‘pega’ qualquer coisa, assuma o comando, o Santos Dumont é seu destino.” A propósito: você entraria num avião se soubesse que o piloto não ama e não sabe pilotar aeronaves, e está naquela cabine apenas por falta de opção, dispondo-se a fazer um trajeto com combustível insuficiente para isso? Ou colocaria seu filho nas mãos de um médico, para uma cirurgia, se o doutor não tivesse na Medicina o seu maior propósito, a sua missão? Eu não.
Muita gente, presa à formação judaico-cristã, segundo a qual o trabalho tem de ser um peso, uma forma de castigo, e avessa à ideia de prazer, torce o nariz quando ouve a expressão “fazer o que gosta”. Mesmo sabendo que o contrário disso pode trazer implicações muito sérias. Não é por acaso que prefiro entender como absolutamente normal a busca por um espaço dentro da ampla área de competência, ainda que isso exija algum esforço de adaptação por parte do profissional. Exemplos: um redator publicitário preencher uma vaga no departamento de Planejamento da agência de propaganda ou no Marketing do cliente; alguém cursar Administração em Harvard, trabalhar no Brasil na área de criação publicitária e depois se tornar presidente de um respeitável grupo de comunicação, isso faz sentido e é comprovado por fatos. Mas um excelente motorista acreditando que, por isso, e somente por isso, está preparado para pilotar avião, isso não. Inconsequência e irresponsabilidade têm limites.
Para concluir, podemos lembrar aquele profissional que, ao se candidatar a uma vaga para a qual não está preparado, apresenta como principal motivação o fato de que precisa trabalhar porque tem contas a pagar e por isso se sujeita a ‘qualquer coisa’. Algo como aquele homem que, perguntado sobre o projeto repentino de casamento, responde que vai se casar porque não aguenta mais essa vida de fazer comida, lavar, passar, cuidar da casa etc. Não há brilho em seus olhos, o nome da futura esposa não lhe diz quase nada – ela é apenas uma ‘qualquer coisa’. Que mulher embarcaria numa vida matrimonial sabendo que a principal motivação do futuro marido foi a de se livrar de algumas tarefas tidas como incômodas?
Convém lembrar que empresas que buscam relacionamentos sérios querem envolvimento com profissionais apaixonados pelo que fazem. Você consegue imaginar o escritor americano, Prêmio Nobel de Literatura, Ernest Hemingway, escrevendo 39 vezes – trinta e nove vezes – o último capítulo do livro Adeus às armas, se ao escrever ele apenas se sujeitasse a aceitar qualquer coisa como resultado final da obra? No lugar de um romance de peso, que enriquece a literatura universal, o infeliz jornalista teria produzido um lambe-lambe de baixa qualidade, talvez.
Dinheiro para pagar as contas? Indispensável, claro. Mas ele é consequência. Consequência natural. ₪
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