De volta do centro Cultural e sem passar pelo clube para ver uma partida de tênis entre amigos, Camille escreveria um artigo discutindo a situação econômica da América Latina, que lhe parecia precária e inspirava cuidados. Esse era o assunto sobre o qual a economista vinha se debruçando em suas aulas na universidade.
De improviso, colocou alguns livros escritos por especialistas encima da cristaleira repleta de objetos antigos, vindos da ostensiva casa, onde vivia com a mãe viúva e doente.
Sem improviso, Camille admirou o vaso de Murano recheado de jasmim branco, um lírio do vale e algumas orquídeas vermelhas – eles pareciam ainda mais bonitos naquele dia.
O candelabro excêntrico, adquirido em uma viagem ao exterior, quando participou de um congresso, a fez pensar em situações vividas durante essa experiência, e de como conheceu o marido. Ela estava muito distraída quando derrubou o cachimbo inglês predileto dele – a vítima manteria o silêncio, procurando conviver com a parte trincada. Quanto à reação do marido, isso a História há de revelar.
Como estivesse frio, foi até a cozinha e preparou uma caneca de leite com chocolate e aveia, ingredientes que não faltavam à sua liturgia gastronômica de todo santo dia.
Voltou para o escritório, instalado num amplo quarto apinhado de livros e revistas nacionais e de outras partes do mundo. Dominar idiomas como inglês, francês e alemão lhe dava a possibilidade de antecipar tendências, por meio do contato com grandes nomes da Economia. Alguns anos atrás o assunto havia lhe garantido o título de doutora por uma universidade belga.
O telefone tocou. Era Ilza, pastora que em suas pregações nos cultos dominicais, incomodava alguns presentes, queria falar com Camille. Ela lhe pediria alguns dados econômicos que pudesse incluir na liturgia do próximo final de semana – a amizade de muitos anos lhe dava espaço para isso.
Camille prometeu-lhe que depois de escrever ao menos o primeiro rascunho do texto falaria com ela, com dados concretos, cujas informações lhe enviaria antes pela internet.
O encontro foi marcado numa cafeteria. Na frente daquele sobrado havia uma tocha inquieta e permanentemente acesa, não se sabe o porquê disso. Dentro de um sapatênis azul, Camille levou tudo o que julgou necessário para evitar uma conversa com espaços vazios além dos inevitáveis devido à complexidade do tema.
Seu corpo alto e delgado, cabelos compridos presos por um pequeno laço azul discreto, chamou a atenção de alguns clientes.
Elas estavam sentadas numa mesa junto à janela por onde se via uma avenida congestionada, monótona e barulhenta. O café com leite, junto da água com gás, seria servido com certa demora. Enquanto analisavam gráficos, tabelas etc., Ilza não perdeu a oportunidade de arrancar o rótulo, reduzindo-o a pequenos fragmentos de papel úmido e humilhado. Arrancaria de outras garrafas se elas aparecessem e ficassem ao alcance de suas mãos.
– Ilza, a nossa economia se parece com essa avenida aí fora.
– As pessoas precisando de espaço pra andar, mas não conseguem – Deus seja louvado!
– Estão presas. Os carros podem fazer barulho, tudo bem, mas... E os organismos internacionais se mexem pouco pra mudar isso.
– Olha, está “assim” de autores que tratam das diferenças sociais.
– Do lado de fora tem muitas pessoas querendo as oportunidades que nós temos – disse Ilza.
Os olhos de Ilza brilhavam ainda mais com essa conversa. Ela prosseguiu.
Conversa de gente grande, cheia de reflexões, parábolas e tudo o mais.
[CORTA]
Era domingo. O templo estava com os bancos lotados. Algumas pessoas haviam comparecido para aprender um pouco mais. Outras, para ver o que a pastora polêmica falaria e então poder contestar, sobretudo nas redes sociais, como de costume.
Do outro lado da cidade, e sem se dar conta da presença de um sapo desencontrado próximo ao seu chinelo, Euclides deixou o arado exausto embaixo de uma velha figueira cheia de indiferença. Deu de comer para os dois carneiros. Olhou, cheio de expectativa, para o pé de melancia carregado, que se arrastava lentamente pelo chão. Verificou o progresso da parreira de uva rosada e foi para a igreja, porque isso era sagrado para ele. A botina, que só usaria nessas ocasiões, continuava na loja. Foi de chinelo mesmo – Deus entenderia isso.
Mesmo se sentindo desconfortável por estar num lugar que, segundo ele, abrigava uma multidão, enquanto a pastora pregava, Euclides levantou uma das mãos, robustas e com unhas sujas da lida diária na terra.
– Pastora, a senhora me dá licença... – ao se levantar, o chinelo enroscou no banco e uma das tiras rompeu.
– Pois não, pode falar. Como é seu nome?
– É Euclides. Eu trabalho num sítio aqui pertinho.
– Fala, meu irmão.
– Eu não sei falar direito, quase não fui “na” escola.
– Fala, estamos te ouvindo. Pode falar.
– A senhora sabe aquela passagem que o Senhor multiplicou a comida?
– Sim, claro que lembro. Ele multiplicou pães e peixes.
– É, era pão e peixe, a pastora tá certa. E deu pra todo mundo matar a fome, não deu? A igreja tem bastante dinheiro, não tem?
– Isso mesmo. Pois é, meus irmãos. Alguém que disse que nem sabe falar vem aqui e nos questiona... Vamos ver seu eu consigo responder.
– A pastora fale – Euclides passou a mão na sobrancelha espessa.
– O dinheiro da igreja é para as missões. Elas não podem parar. As pessoas precisam ser evangelizadas.
– Mas ela não pode repartir um pouco com os pobres?
– Não adianta, meu irmão. Precisa mais do que isso, entende?
– Bom, então não adianta mesmo.
Euclides se retirou do templo, com um desânimo que parecia uma corrente presa em seu tornozelo. Afinal, o que é um peso a mais?
[CORTA]
Ilza abandonou o trabalho que fazia na igreja, assumindo a condição de leiga. Estava decidida a fazer outra coisa na vida.
Além de abraçar uma causa social, se aprofundaria em questões econômicas, talvez na universidade onde Camille ensinava. Queria viver dos próprios ganhos e tentar mudar a vida de outros Euclides que andam por aí.
O artigo de Camille foi publicado e a repercussão a levou para um congresso internacional para novos debates.
Ilza entrou na universidade. Agora, professora e aluna estariam unidas dentro e fora da sala de aula, na cafeteria de sempre e nas ações sociais.
Havia muito o que fazer. Havia muito pão e peixe apodrecendo por aí – nas residências ou nos imensos galpões, esperando o momento certo de vender com lucro maior. ≡
Comments