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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Talvez, por que não?

Talvez Carmem fosse até o restaurante e pedisse uma suculenta porção de nhoque a bolonhesa, com bastante queijo, porque era movida a produtos à base de leite. Talvez não fosse a lugar nenhum. O cachorro imaculadamente branco puxou-a para outros lados. Ou para lado nenhum. Ela precisava comprar um par de sapatos imaculadamente brancos, ali mesmo no shopping. Mas precisou voltar para casa. Ficou preocupada com a boa e a má notícia que ouviria – “Comece pela má notícia, vamos lá.”

A dentista não sabia ao certo o que fazer. Atendeu aos impulsos do cachorro. Atendeu à fome e pensou em comer. Ficou pensando, durante um décimo de segundo no que seria o melhor caminho a tomar. Resolveu voltar para casa.

No portão, encontrou a filha Laís. Carmem desejou perguntar do que se tratava, afinal. Não perguntou. Laís fez menção de falar. Não falou. Viveram momentos de segredos mútuos. Um cachorro grande, desbocado e de mau humor, latiu para o seu pequeno brinquedo imaculadamente branco, preso a uma coleira de grife, talvez fabricada sob encomenda.

Resolveram entrar. Sentaram no sofá que se esparramava num grande espaço da sala enorme. Uma olhou para a outra. A outra olhou para a uma. Era preciso falar. Era preciso ouvir. Era preciso contar. Era preciso saber.

Laís deu o pontapé inicial. Uma lista enorme estava na sua mão, impressa no computador do escritório doméstico. Lá estava seu nome. Ela havia conquistado uma das melhores classificações no vestibular para Medicina na melhor universidade do país e era preciso celebrar.

A primeira parte do rito incluía dar um susto em sua mãe, a mentora intelectual do caminho profissional a ser seguido pela filha. Laís representou bem. Ardilosa, primeiro trouxe para casa, em pouco tempo, a mãe e seu cachorrinho imaculadamente branco. Trouxe ansiedade e medo. Trouxe Carmem para ver e ouvir uma dramatização perfeita – sua menina ganharia o Oscar pelas quase lágrimas que por pouco fez jorrar dos seus olhos azulados. Tanto fez e tão bem que por pouco não acreditou no que ela mesma contava para sua mãe – uma fingidora perfeita.

Carmem chorou. Laís se permitiu chorar, mas agora sem dramaturgia, porque o momento era feito de celebração, alegria, convites para almoçar – “espera, mãe, vou pegar meu chinelo”.

Em poucos minutos o carro vermelho, de grife, ficou repleto da mãe, da filha e do cachorrinho imaculadamente branco. No restaurante, Carmem pediu peixe à Belle Meunière, porque ainda era quarta-feira, e um vinho, sugestão do chef para aquele prato. Depois devoraram salada de frutas, frutas tropicais, orgânicas, vindas de produtores locais e selecionadas a dedo pelo restaurante.

Na volta ouviram Chico Buarque e rock da melhor qualidade. Buzinaram sem necessidade ou com toda a necessidade do mundo. “Seu guarda, deixa pra lá, minha filha entrou em Medicina!”, ela diria se fosse parada. Não podia parar de celebrar. Passaram no vermelho, não deu tempo de frear no amarelo, a festa neutralizou o freio e aumentou a potência do acelerador. O escapamento anunciou que havia festa, Laís na faculdade de Medicina, e ela salvaria vidas, teria um futuro brilhante, talvez tirasse o jaleco branco apenas para tomar banho – Medicina é sacerdócio.

Talvez até se tornasse diretora da OMS. Talvez anunciasse uma nova pandemia. Talvez anunciasse a produção de remédio para todas as pandemias. Talvez anunciasse a vida nova que a humanidade tanto espera. Talvez o fim da guerra, o ambiente preservado, as meninas deixadas em paz e as mulheres respeitadas - a vinda de Jesus emprestou o corpo de uma mulher, a primeira pessoa a anunciar sua Ressurreição foi uma mulher, e ninguém precisa de outro currículo.

[Que ser maravilhoso esse que gera santos, poetas, músicos, cientistas, professores, escritores, médicos e tanta gente de que a humanidade se orgulha em ter na sua lista de parceiros para melhorar a cara do mundo, maltratada demais].

Sylvia deixou a cozinha e foi até a creche. Queria entender porque sua menina estava com febre e se recusava a comer. Mas a jovem Laís ainda não era médica, apenas poderia arriscar algum prognóstico, dizer que talvez fosse uma virose, isso que muitos médicos afirmam sobre seus pacientes, quando não sabem garantir o que está acontecendo com sua saúde.

Para cumprir uma promessa, depois do almoço, Carmem e Laís iriam ao santuário do outro lado da cidade, agradeceriam a Deus e comungariam. Depois iriam ao cinema ver o último lançamento e voltariam, fortalecidas, para enfrentar a caminhada de todo santo dia, agora com Laís aprovada no vestibular. Em alguns anos ela seria a Dra. Laís, talvez especialista em neurologia, talvez em psiquiatria. Talvez em outra coisa, sugerida pelo encantamento com as aulas de uma professora que ensina maravilhosamente bem, trabalha maravilhosamente bem, devolve a saúde a pessoas que ameaçam se lançar num desespero e falta de perspectiva.

Mãe e filha queriam celebrar mais um pouco. Não foi possível. Precisaram adiar. A filha de Sylvia havia sido internada e o momento de festa não estava para festa.

A menina ficou alguns dias no hospital, em observação, e voltou para casa, a mesma criatura sapeca de sempre, falando muito, brincando muito, pedindo doces e refrigerantes que o médico sugeriu que apreciasse com moderação, pelo menos nas próximas 72 horas.

A menina de Sylvia voltou para a creche, não sabia nada de vestibular, entrada na universidade pública que ficou privativa dos endinheirados que dispõem das melhores escolas do país, nada disso.

Então houve festa, um jantar diferente e mais rico em detalhes do que os de todo santo dia, agora capitaneado por Sylvia.

Então o tempo passou. Laís foi para a universidade. Carmem manteve a rotina de todo santo dia – atender clientes com cáries, dentes escuros, implantes, colocação de aparelho e tantas coisas que os cuidados exigem para uma boa saúde bucal.

O tempo passou e passou mais ainda. Dia de formatura. Carmem não se cabia, deixava as lágrimas escaparem do seu rosto com maquiagem borrada. A menina de Sylvia desejou ser médica, só precisava de uma enorme lista de nomes, ela entre as primeiras que, alguns meses depois, iriam para a universidade e talvez alcançasse até mesmo o posto de diretora da OMS.

O cachorrinho imaculadamente branco não sabia de nada. Ocupando o terceiro lugar na lista de prioridades da família, a consulta com o médico veterinário seria dois dias depois.

Saúde!

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