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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Sobre viver

Vivendo no exterior, houve um tempo em que, no domingo, depois de louvar a Deus num culto que o celebrava em inglês, Jorge, um Relações Públicas com bagagem de trinta e poucos anos, ia até o centro da cidade. Era fácil identificá-lo entre tantos passos e pensamentos que ocupavam calçadas e lojas. Jorge tinha cabelo pontudo, olhos cinzentos, pele desigual e testa alta. À época, estava levemente acima do peso.


Ele andava em lugar nenhum e tomava um café, na verdade, um cappuccino. Brigava com a saudade da mulher essencial e vigiava o movimento a procura de ideias e palavras soltas com que pudesse compor as impressões daquele dia. Tratava-se de uma autoconcessão, o que nada tinha a ver com qualquer prática psicoterapêutica. Um mimo justificado por estar trabalhando, produzindo inclusive o próprio sustento.


Mas essa experiência provocou trovões na cabeça de Jorge. A empresa onde trabalhava levou isso [também]. Ladra por natureza e destino, hábil em roubar o que há de mais precioso, o tempo, ela mesma criava a ocasião para o roubo que ia praticar. “A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito”, me disse um professor. Muito bem lembrado. Nesse caso, tudo leva a crer que esse triste diferencial é original de fábrica. Faz parte da sua natureza, que de outro modo se converteria em poeira.


A ganância corporativa não tinha medida, o que criava um fosso irreparável entre ela e seus recursos humanos sempre instáveis.


Não tive como esquecer uma conversa com Henry Ford nas páginas de um livro, quando ele me disse que "Você poderia tirar de mim as minhas fábricas, queimar os meus prédios, mas, se me der o meu pessoal, eu construirei, outra vez, todos os meus negócios.”.


Pena que naquela empresa o essencial, as pessoas, eram expulsas, impedidas de ser garantia em tempos de crise. A começar pela falta de planejamento ou a pouca seriedade que determinava previamente a mão de obra necessária à realização de uma tarefa, ela criava expectativas para em seguida empilhar frustrações. Por que lidar assim com as pessoas se recursos tecnológicos para resolver isso não lhe faltava? Por meio deles, era possível saber, antecipadamente, o volume de produtos já feito, o que estava por fazer e a mão de obra necessária para aquele dia em particular. Também aqui, a negligência não encontrava qualquer explicação razoável.


Em algum livro que levou consigo, ou foi na internet, Jorge leu sobre o Experimento da Prisão de Stanford, conduzido em 1971, por Philip Zimbardo. O estudioso testou como universitários de classe média [americanos], escolhidos aleatoriamente, agem quando dispõem de autoridade com poder ilimitado. Não deu outra. Ele se identificou com aqueles prisioneiros submetidos a essa situação. Visto do lado de fora, tudo na empresa parecia rigorosamente normal. Lá dentro, no entanto, o clima era de um autêntico presídio, com todo o ritual e liturgia que o define.


Sempre ouvi dizer que quem abre uma escola fecha uma prisão. Mas parecia que aquela jamais seria fechada. Quem tem poder de destruir as colunas de aço do cifrão?


A empresa entronizava o lucro. E naquele ambiente chamado profissional, Jorge se sentia como quem cumpre pena em regime semiaberto. Podia dormir em casa, é verdade. Entretanto, pela manhã, bem cedo, tinha de se apresentar aos carcereiros. O crime cometido, isso ele não sabia dizer – o julgamento e a condenação aconteciam sem direito de defesa, à revelia. Ao repouso noturno de Jorge faltava consistência. Sob o comando de um despertador rigoroso, ele trocava a cama pela rua fria, úmida e tomada pelo vento antes das cinco horas da manhã, a fim de buscar alguma coisa, mas voltar com muito pouco ou quase nada. No bolso e na alma.


Estar na lista dos escolhidos para trabalhar naquele dia era apenas uma questão de sorte. E quando tinha a sorte de permanecer em suas dependências, o tempo todo ouvia dois idiomas que em nada contribuíam para o desempenho das suas tarefas.


Também por isso, Jorge não sentia qualquer orgulho por fazer parte de uma procissão diária de trabalhadores que marchavam para atender à convocação e retornavam de mãos abanando. As ruas e ônibus já conheciam bem essa rotina. O tempo e a saúde de Jorge se perdiam por aquelas vias, e o que voltava já não era intacto. Não conseguia pertencer a um grupo e sentir segurança emocional, apenas ajudava compor um amontoado de corpos em luta. O vazio, este sim, ocupava os seus lugares. De volta, o que entrava em casa era um bagaço físico e emocional de pouca serventia. Tudo se orquestrava para aumentar nele o antigo medo de fracassar e enlouquecer.


Tudo somado, e retomando Ford, numa emergência aquela empresa não poderia se apoiar em um grande número de seu contingente de pessoal para se reconstruir. Talvez pudesse contar, sim, com o pequeno grupo formado por aqueles que, para não se machucar ainda mais e comprometer a sobrevivência biológica, preferiam não ter consciência da exploração a que se sujeitavam. Embora nem sempre identificados e conscientes, os mecanismos de autodefesa estão por toda parte.


Quanto a Jorge, ele certamente não estaria em suas fileiras. Reagiu. Redesenhou o caminho. Como no Antigo Testamento, na primeira oportunidade ele triturou a escravidão e mergulhou no deserto. Não, Jorge não amava os desertos. Ele apenas sabia que, por vezes inevitável, depois dele havia um espaço chamado Terra Prometida. Então viajou para lá e ali fez a sua nova morada.


Reagiu com naturalidade ao toque do despertador. Longe da cama, foi abençoado pelo sol.

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