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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Quem bate para ensinar...

Doze horas e trinta minutos. O sol estava quente. O sol estava muito quente – o asfalto em frente à escola que o diga.


Não tinha vento. Algumas árvores tentavam, sem sucesso, mexer as folhas mais altas. O clima estava abafado. No céu, nuvens escuras informavam sobre os preparativos para mais uma tempestade. Tinha relâmpago. Tinha trovão. A chuva não demoraria a desabar sobre a pequena cidade.


O prédio do Grupo Escolar era um dos pouquíssimos que ostentavam dois andares. Fazia pouco ele passara por uma reforma. As paredes estavam limpas. Tudo estava limpo. Tudo exalava cheiro de tinta novinha em folha.


No pátio, ouviu-se o sino de bronze tocado por um Servente que não desafinava. Meninos e meninas formaram filas indianas. Uma do primeiro, uma do segundo, uma do terceiro e uma do quarto ano. Assumiram a posição de sentido, como nos quartéis. Lendo na quarta capa do caderno escolar, cantaram, mecanicamente o Hino Nacional e depois entraram.


Aquele não era o mundo de Maria de Lurdes. Por isso ela era uma das últimas a integrar a fila do segundo ano, turma pilotada por uma professora rígida no andar, no falar e, mais ainda, na disciplina imposta às crianças.


– Maria de Lurdes, por que você está sempre atrasada?! – gritou a professora Thereza.

– Eu já estou aqui... – sussurrou ela, tomada pelo pânico. Aquilo não era o prenúncio de um dia tranquilo. Se no pátio era esse o clima, o que esperar quando estivesse em sua carteira, ao lado de um colega e a porta da sala aula devidamente trancada? Dez minutos depois, novo embate entre elas.

– Maria de Lurdes, põe as mãos sobre a carteira! Já! – gritou mais uma vez a professora, que gostava do exercício da autoridade. Em seguida, usando a régua que era extensão do próprio braço, aplicou um golpe certeiro na mão da menina. Era assim que mostrava sua indignação por ver que as unhas daquela criança rural estavam compridas e sujas de roça. Permaneceu, inerte, bem próxima à aluna.

– Maria de Lurdes!! Será que você nunca vai aprender a tabuada?! – gritou, enquanto olhava para a classe. A estratégia de intimidação funcionava. Em cada carteira, duas crianças se encolhiam, apesar da distância aparentemente segura.


Enquanto Maria de Lurdes chorava de dor, pelo golpe na mão, sem ter a quem se queixar, Arlindo se esforçava para engolir o choro. Os outros alunos assistiam a tudo, assustados. Assustados e sem aula. Sem aula e sem desenvolvimento. Apenas aumentavam a certeza pessoal de que aquilo não era vida, sem ao menos saber como formular esse raciocínio.


Final da aula. O mesmo Servente entoou a música do sino e ela soou exatamente como música aos ouvidos de Maria de Lurdes, Arlindo e de outros quarenta garotos e garotas que, diariamente, viviam o mesmo drama.


De volta pra casa, Maria de Lurdes estava no seu mundo, aquele que fora desenhado ou, talvez, ela tenha arquitetado para seu uso pessoal e restrito. Em pouco tempo chegariam seus pais. Eles viriam lentamente e sem muita conversa, porque um cavalo vira-lata, uma plantação de arroz que não recebia mais do que sol e chuva, nada disso rendia conversa. Nas costas, carregavam um saco onde se misturavam legumes, umas espigas de milho e feijão verde. No corpo, muito cansaço em cada centímetro de músculo moído pelo trabalho de resultado lento. Junto, viria Pedro, o irmão mais novo.


– Maria de Lurdes, vai dar milho pros porcos! – ordenou o pai.

– Não vou. Minha mão tá doendo – respondeu, escondendo-a entre as pregas do vestido que nem era seu.

– Que mão doendo nada, menina! Estudar não dói a mão! – para de besteira! – respondeu o pai, descarregando aí uma parte do peso do seu dia de pequeno agricultor sem perspectiva.

– Manda o Pedro. Eu não vou – insistiu Maria de Lurdes.

– Pedro, ajuda sua irmã a tratar os porcos, vamos! – o pai gritou.

– Ah, pai, manda a Lurdes! – respondeu o garoto, cara fechada, num misto de raiva e tristeza.

– Ah, é? Você não vai?! Então vou te ensinar – disse a irmã, repetindo uma frase corriqueira também na boca dos seus pais. Quando terminou de dizer já estava perto de Pedro. Pegou um pedaço de pau, improvisado, e com ele acertou sua mão direita. Em seguida lhe deu um tapa na cabeça.


Pedro começou a chorar, um choro que misturava pavor e muita raiva.


– Menina, eu não disse pra você não bater no seu irmão! – gritou o pai, e também lhe deu um tapa, que considerou pedagógico – era apenas para ensiná-la a não repetir esse comportamento.

– Com quem você aprendeu isso, Maria?! Bater desse jeito?! Com um pedaço de pau?! – repreendeu a mãe, sob a proteção do marido.

– Hoje, a dona Thereza disse que ia me ensinar limpar a mão e aprender tabuada. Ela bateu na minha mão com a régua de pau.


A professora bateu para ensinar. A professora ensinou a bater.

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