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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Quando a saia fica muito justa

Márcia vivia feliz por ter realizado a sua maior conquista: um diploma de médica veterinária e a oportunidade de trabalhar na sua área. Na grande empresa, especializada em pesquisa e produção de bens e serviços destinados a pequenos e grandes animais, seus olhos, com sinais leves de um leve estrabismo, não perdiam um detalhe sequer do que acontecia no departamento que há dois anos estava sob seu comando.


- Não é a beleza, a aparência que conta. Pra mim, o que vale é a competência – disse certa vez, numa reunião com sua equipe, e só depois se deu conta da observação enviesada que fez. Quantos entenderam?


Com andar cadenciado e uma voz que tendia para o suave, mas nem tanto, ela misturava traços de uma personalidade competitiva e um tempero nada popular de moralismo fora de hora e lugar. E seu hábito automático e sem qualquer má intenção de apontar o dedo indicador, sempre que falava, não era propriamente uma contribuição – um dia, conversando com Deus, de repente se deu conta de que já havia apontado-lhe o dedo. Deve ter sido perdoada, já que o Criador atua no ramo do perdão a pessoas mortais como você e eu. Ela odiava se lembrar, sempre muito tarde, que havia feito esse gesto para os colegas e clientes, gente sem nenhum conhecimento do seu prontuário íntimo, talvez clínico.


Competitiva como sempre, Márcia não estava satisfeita com a sua condição profissional. Sempre querendo mais, candidatou-se a participar do processo seletivo para gerente em outra companhia, líder no seguimento.


- “Não acredito, sim, eu acredito...! Meu currículo foi aprovado!” – Márcia falava consigo mesma, toda boba e envolvida por um sentimento de alegria e certo medo, algo confuso acontecendo lá dentro, e ela nem sabia ao certo se aquilo era mesmo bom. E depois, sorrindo e gesticulando, falava com amigas, sobretudo aquela de tanto tempo, conhecida nos tempos de faculdade, experiente na arte de ser bem sucedida, inclusive no casamento.


Acontece que se o pacote era atraente, também era verdade que os nós apareceram tão logo ela pensou em abri-lo. O processo seletivo aconteceria em outra cidade, bem longe dali, em outro estado do país.


- Não sei como fazer – disse ao marido, automaticamente apontando-lhe o dedo indicativo.

- Você precisa ter cuidado, Márcia – ele disse, pausadamente didático.

- E o pior: não sei como falar sobre isso com meu chefe – prosseguiu.

- E tem outra questão, querida: o risco de você não se adaptar ao novo trabalho e estilo de vida, em outra cidade, sei lá... – disse o marido, pensativo.

- É, e tem a minha família, tenho medo de alguns julgamentos, você sabe... – concluiu.


Havia o desejo, alimentado pela forte ambição, de iniciar uma vida nova, mas a necessidade de ficar insistia em ganhar corpo, um corpo igualmente grande, cheio de formas bem definidas e muito presente.


Do alto da sua estatura, Márcia pensou bem e resolveu que seria melhor não se arriscar. “Estou com medo, me-do, sabe o que é isso?”, sussurrou para uma colega e o espelho da toalete, piso de granito cinzento, feito de desenhos desconexos, e dessa vez o dedo indicativo se manteve calado.

Embora sempre cheia de confiança, que a impelia para frente, a médica não se relacionava bem com sensações e emoções do tipo. Lutava contra isso, e vencia muitas vezes. Dessa vez, no entanto, o medo foi maior do que ela. Pouco a pouco, se deu conta de que não estava bem preparada para o novo trabalho. Nunca fora gerente. E quanto a morar sozinha? E quanto aos compromissos familiares já assumidos? E quanto ao toc, diagnosticado, de evitar usar coisas novas ou até mesmo guardar sem nunca usá-las, num lugar onde o espaço seria reduzido? E quanto a tudo que, de um jeito ou de outro, bem podia ser um exercício de autossabotagem? Mas, tudo estava resolvido: Márcia era dona de um medo crônico de avião, e isso poderia salvá-la definitivamente dessa tarefa indigesta.


Tentando buscar meios para discernir, falou com uma amiga, gerente de RH numa empresa do ramo de cosméticos. Ela lhe forneceu alguns artigos que poderiam ajudá-la naquele momento de desafio e decisão complexa. E conversaram longamente, durante um jantar em que a comida era um item de importância secundária.


Finalmente Márcia decidiu aceitar o convite. Conversou mais. Leu mais. Buscou segurança onde pôde. Mas em todo o tempo conviveu com o medo de uma decisão precipitada. Até recebeu algumas demonstrações explícitas de apoio vindas de amigos. Ao mesmo tempo, também encontrou dificuldades trazidas por outro desafio: desligar-se da empresa, até agora seu terreno seguro, numa época de emprego escasso. Isso, no entanto, não a impediu de seguir em frente no propósito de viajar e lutar por uma nova condição na carreira.


Quando tudo parecia resolvido, ou quase, surgiu um comentário e ele dava conta da possibilidade da venda da empresa onde trabalhou até então. Isso tudo acenava para caminhos diferentes: sua demissão automática, para recomposição da equipe, ou uma promoção. O cenário ficou ainda mais confuso. E a médica movida pelo espírito competitivo de sempre, agora ficou depressiva, perdeu o sono e se alimentava mal. Mas tomou a decisão que considerou acertada: viajou.


Márcia foi aprovada no processo seletivo e conquistou a vaga prometida. Seria gerente de um grupo ainda maior, e experimentaria os desafios de desbravar esse terreno, trocando o pneu do carro com ele em movimento, numa estrada muito disputada por outros veículos de todos os portes e pedágio insistente.


Mais segura das suas decisões, enfrentou o desafio de ingressar numa escola de aperfeiçoamento na área em que atuava, ainda que vivendo a primeira experiência na cidade, na empresa, na nova residência e vizinhança.


Passado algum tempo e vencidos alguns percalços nessa estrada por vezes de terra batida e buracos, agora ela se sentia mais madura, mais experimentada. Sempre que podia, falava com pessoas da sua cidade de origem, principalmente quando se tratava de gente em vias de tomar decisões arriscadas no campo profissional.


A empresa onde trabalhava foi comprada por outra, bem maior, como previsto pelos boatos. Em pouco tempo, Márcia recebeu uma proposta que mexeu em sua estrutura já estabelecida. Sentiu-se dividida, porque os dois caminhos eram feitos de desafios em que se cruzavam riscos e recompensas lisos o suficiente para fugir dos seus cálculos e do seu controle.


Novamente aceitou o desafio. O celular tocou. Na outra ponta da linha, o marido lhe contou uma novidade: em pouco mais de um mês ele deveria estar vivendo em outra cidade, bem longe dali, em novo cargo e vizinhança desconhecida.


Ἅbяe aspas”– Falando sobre o trabalho de reescrita no livro O encontro marcado, Fernando Sabino disse que ao todo ele o reescreveu três vezes. Gastou em torno de 1.400 páginas para aproveitar não mais de 300. Lembrou ainda que pegava uma vereda e dava num beco sem saída, o que provocava a perda de 60 páginas. Foi o que aconteceu no caso de um personagem ter uma filha. Depois de escrever muito, a garota já bem crescida, Sabino se deu conta de que ela devia ter nascido morta. Pronto, perdeu todo o trabalho, concluiu o escritor.

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