Daniel entrou na lanchonete e pediu um cheeseburguer. Grudou o olho na tela da TV, que mostrava uma partida de futebol. Ele se limitava a jogar uma pelada aqui, outra ali. A amoreira em frente ao restaurante manchava a calçada de vermelho, e a árvore podia contar com a companhia de uma Azaléia que crescia grudada em sua raiz e nunca recebeu um centavo pela beleza sempre original.
O balconista encaminhou o pedido ao copeiro, que fez o lanche pedido, com capricho, para o corretor de seguros cheio de uma autoconfiança que mal podia acomodar. O balconista ganhava para isso, é claro. E recebia pontualmente o pagamento pelo trabalho combinado, seja ele um valor alto, justo, abaixo da média do mercado, aquém das capacidades daquele profissional, não importa. Ao menos era essa a visão corrente, segundo a qual o dinheiro, único parâmetro, resolve tudo. Aliás, o garçom poupava excessivamente e sofria quando tinha de gastar, mesmo tendo dinheiro disponível.
Enquanto esperava, Daniel empurrou com força o açucareiro que estava sobre a mesa, depois o colocou na mesa lateral, próxima ao corredor e a uma árvore de Natal que, naquele lugar, não tinha o menor clima para festas.
– Tem alguma coisa errada com o meu lanche. O que vocês colocaram aqui? – perguntou Daniel, com ar de estranheza e pouca satisfação, usando como recurso teatral as sobrancelhas indisciplinadas. E sempre acreditava que o corpo em boa forma e as mãos largas significassem uma grande força, capaz de convencer pessoas com mais facilidade.
– Bem, o senhor pediu um cheeseburguer, não é mesmo? – respondeu o balconista.
– Sim, foi o que eu pedi. E a cerveja podia estar mais gelada, não acha? – o olho continuava pregado na TV.
– E foi o que eu fiz. O que há de errado com o seu lanche, senhor?
– Ele tem queijo e eu não gosto de queijo. – disse, apontando o dedo indicador e mantendo o olho pregado na TV. O queijo sentiu na pele o que é viver a falta de prestígio.
– Tudo bem, mas cheeseburguer tem queijo, não é mesmo?
– Sim, claro que tem. Mas por que no “meu” lanche? – o olho continuava pregado na TV. Um clérigo, que esperava uma refeição para alimentar um faminto que frequentava a porta da igreja pensou em intervir. “Só Jesus na causa, se é que ele vai querer se envolver com isso” – refletiu. Outros clientes assistiam a pendenga, ansiosos por ver aonde essa história chegaria. Talvez Freud, com a ajuda de Jung, conseguisse explicar ao menos alguns aspectos desse comportamento. Daniel retirou o queijo e comeu o a outra parte do lanche.
Algum tempo se passou – alguns dias, na verdade. Muita gente passou por aquele balcão. Muitos lanches passaram por aquela chapa, atendendo a clientes que realmente queriam cheeseburguer, talvez por causa do queijo que se escondia lá dentro e se esparramava paladar afora. E a vida corria tranquila naquele restaurante até o dia em Daniel voltou.
Um dia, cheio de apetite, dentro da inevitável jaqueta cinza e da calça jeans, e atrás dos óculos de sol com lente verde, pediu o seu lanche preferido.
– Me traz um cheeseburguer. E uma cerveja bem gelada.
– É pra já – respondeu o mesmo balconista, preparado para os possíveis momentos belicosos que certamente adviriam naquela relação mal-resolvida.
– Outra vez a mesma coisa? Eu não disse que não gosto de queijo? – disse, apontando o dedo indicador para o balconista. De novo o queijo se sentiu mal. Teve vontade de ir embora, de se transformar de novo em leite. Novamente Daniel comeu apenas o que apreciava.
– O que foi mesmo que o cavalheiro pediu? – perguntou o balconista, com uma pontinha apenas de irritação e a segurança quanto ao fato de que aquele cliente era bom de apetite, apenas não sabia direito o que queria comer, só desejava criar problemas. Não se sabe exatamente por que, o balconista se lembrou de seu filho de três anos, quanto trabalho aquele menino dá a cada refeição, parece que não gosta de nada! Quer comer, não quer, mas quer... Agia como se fosse um político em dia de votação no Congresso, o menino.
Trabalhando como corretor de seguros, Daniel entendia de uma porção de coisas, as quais fazia muito bem, menos de lanches. Mas talvez não aceitasse a possibilidade de delegar a tarefa de providenciar lanches a alguém do ramo.
Depois de pagar, em silêncio, ele saiu, tomou um café cheio de açúcar na cafeteria ao lado e voltou para o trabalho. Estava visivelmente irritado, o sujeito, a todo o momento ajeitando o cabelo cor de cinza metal.
Fala daqui, fala dali, contou o ocorrido, descrevendo física e moralmente o balconista que o atendera nas diversas vezes em que pediu o polêmico lanche. No final de cada frase, fazia questão de insistir no que ele chamava de incompetência do balconista para assuntos de cheeseburguer, sobretudo quando solicitado a fazer um sem o indesejado aroma ou sabor de queijo. Disse que falaria com o gerente, a quem pediria a demissão daquele funcionário.
Querendo acertar, agora convicto de que atendia fielmente ao pedido do cliente difícil, o balconista já havia trocado ideias com outros colegas do ramo. A partir daí foi tudo muito simples: sempre que Daniel pedia um cheeseburguer o balconista se apressava em encomendar ao copeiro um pão com presunto e tomate – no capricho.
Daniel comeu tudo, com gosto. Depois lavou as mãos, como sempre gastando muito mais tempo e com maior frequência do que o necessário.
Diz a lenda que desde então naquela lanchonete reinou a paz, e o cliente entrou para o rol dos que viviam momentos de extrema satisfação. Mas como reparar os danos causados ao funcionário pelos julgamentos inconvenientes proferidos a seu respeito?
Não sei por que, mas me veio à memória o fato de que Nizan Guanaes, o publicitário por excelência, afirmou certa vez que parte do seu sucesso se devia ao fato de atender clientes que sabiam pedir, pediam exatamente o que esperavam receber. Tudo indica que se ele desejasse comer um singelo pão com presunto e tomate não jogaria suas bombas sobre a cabeça do funcionário que atendeu ao pedido para um cheeseburguer sem adivinhar o resto. ≡
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