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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Proclama de Casamento?

O casamento daqueles jovens agricultores, o noivo escolhido segundo a preferência materna, sempre havia sido motivo de infelicidade para o casal. Essa morte, morte lenta, dói mais e mata mais fundo.


– Mãe, não é do Lucas que eu gosto, você sabe, é do Eliseu! – disse Tereza, a filha mais velha, tentando negociar a própria felicidade.


– Mas é o Lucas que é melhor pra você! – Amélia respondeu, da altura do seu autoritarismo crônico, usando os braços longos para gestos calculados, sem abrir espaço para mais conversa. E retomou a palavra, tão dura quanto uma pedra, para se impor e ferir.


Depois de uma pausa, que não ficaria melhor se tivesse sido estudada, seguiu em frente com o velho objetivo de transformar suas decisões em cláusula pétrea.


– Esse moço é de família italiana, tem até umas cabeças de gado. E uma charrete – Amélia sentenciou, espremendo os olhos claros, emoldurados por lisos cabelos curtos, ajeitando-se mil vezes no lugar onde estava sentada. Assim, pensando naquele rapaz com seu bigode ralo e dentes quase regulares, novamente desejou transformar em pedaços qualquer esperança da filha em relação ao seu direito de escolha.


– Umas cabeças de gado?! Eu não vou viver com umas cabeças de gado! Eu vou viver com um homem! Que serve ou não serve. E esse não serve! É outro moço que eu amo – insistiu, com uma beligerância contida e sentindo na pele cada milímetro do enorme conflito familiar que também lhe trazia o risco de críticas.


– O Eliseu? Aquele pretinho? Não. O italiano. Trabalhador. E para com essa conversa fiada de “gosta”. Primeiro casa, depois gosta. – gritou, deixando rispidamente a mesa em que tomaram o magro café da manhã.


Assim, tripudiando à revelia, Amélia ensinava à filha o que significa ser mãe.


Com os dedos curtos e ansiosos, Tereza redesenhava mecanicamente os cabelos ondulados e curtos. Não havia como conviver em paz com aquele turbilhão de emoções indesejadas, cada uma procurando um espaço a seu modo e acumulando estragos. Era preciso agir. Mas as possibilidades pareciam irremediavelmente inexistentes. Pelo menos até prova em contrário. Ela também se levantou.


Tereza reuniu-se consigo mesma. Distanciou-se da casa e adentrou o cafezal, tranquilo, há pouco mais de cem metros dali. Libertou os pensamentos, e eles voaram – por pouco não carregaram aquele corpo que se equilibrava num andar inseguro.


Tornando ainda menor a boca discreta, aquela jovem de estatura média teve uma ideia e prontamente a atendeu. Nela poderia muito bem se esconder a sua libertação. Não se perdoaria por negligenciar e se tornar prisioneira do medo que a levava a sentir ainda outro medo mais atroz.


Não lhe agradava a possibilidade de precisar agir de um jeito mais assertivo e até abrupto. No entanto, não encontrava outra saída para solucionar o problema: como se livrar de uma pena imposta pela própria mãe?


Estava decidido: no final de semana haveria um baile na casa de um vizinho. O espaço para a secagem de grãos se transformava, com frequência, no lugar onde cabeça, tronco e membros, movidos pela música, se entregariam ao prazer da dança, desafiando a pressa dos ponteiros – os do relógio e do Sol.


Tereza iria ao baile. Aquela seria sua porta de saída e de entrada. Findo o encontro dançante, ela tomaria outro rumo que não o da própria casa. Seguiria para longe daquela prisão domiciliar em que vivia, quase morta.


– Me conta como você vai fazer – perguntou Laura, sua amiga, ansiosa e tomada por uma enorme curiosidade.

– Depois do baile vou fazer de conta que vou pra casa – Tereza respondeu prontamente. Esforçava-se por demonstrar uma segurança nada consistente.

– Vai fazer de conta?! – Laura retrucou.

– Eu saio sozinha, escondida. Vou para a casa da Verônica. Vou ficar lá. Depois eu penso no que fazer – Tereza explicou, corajosamente triste com a decisão.

– Deus te ouça! – acrescentou Laura, juntando as mãos, os olhos levemente voltados para o alto.


Tereza iniciou a primeira etapa do plano montado tão cuidadosamente, primeiro entre o verde do cafezal, depois nos afazeres domésticos, quando o aprimorou. Por pouco aquele grande projeto de fuga não resultou num sucesso. Faltou mesmo bem pouco. Ela precisava apenas da colaboração do seu organismo. Mas ele estava em descompasso com a mente. Poucos dias antes, seu corpo ficou debilitado e a saúde fragilizada ganhou a força necessária que a faria voltar, o corpo curvado, para junto de sua mãe e mais próxima daquele rapaz a quem não desejava.


Continuar em casa era uma questão estratégica. Mais do que de saúde. Ganhar, por vezes, se mostra como perda. Ali, Tereza pensaria no momento certo de retomar seu projeto. Ele seria reelaborado com novos traços, feitos da astúcia exigida pela situação. Sua empreitada não poderia falhar sob qualquer pretexto. Não agora. Outra saída se desenharia e era urgente. Dessa vez, sem os problemas de saúde que comprometeram todo seu intento de encontrar definitivamente a liberdade.


A nova oportunidade apareceu. Um novo baile. Uma nova chance de vida nova dançando e se exibindo em sua frente. Era preciso entrar naquele ritmo com firmeza e segurança, para não errar o passo. A vida não pode esperar. Em silêncio calculado, Tereza precisava fugir daqueles aguilhões que lhe prendiam os pés e anulavam os movimentos mais elementares.


Então novamente ela tentou partir, e o desejou acima de tudo. Os planos estavam perfeitos. Não poderiam falhar. Falharam. Uma pessoa conhecida – Laura, talvez – que não conseguia entender a dimensão desse sofrimento e do desejo de libertar-se, falou mais do que devia.


– A Tereza ficou louca. – disse Laura, a meio tom de voz, à mãe.

– Louca por quê? – havia em sua fala um misto de curiosidade mórbida e alguma preocupação com o desfecho dessa história.

– Ela vai tentar de novo. Fugir. – Laura respondeu, quase confidencialmente, enquanto olhava para os lados, a fim de se certificar de que sua grande língua não esbarraria em algum ouvido inconveniente.

– A Tereza ficou louca - disse. – Acho que não tem mais jeito, Dio santo! – as mãos apontadas para o alto, olhos revestidos de espanto e certa piedade. – Deus dê juízo pra essa moça. – concluiu sua mãe.


A notícia logo chegou, fresquinha e sem checar as fontes, aos ouvidos dos pais de Tereza.


– Já chega os outros escândalos. Já chega de tentar fugir! – gritou Amélia, andando de um lado para outro, sem encará-la e mergulhando-a num silêncio resignado que tardou a desaparecer.


Mais uma vez, Tereza foi mantida em casa, agora levada pela doença da intromissão, da invasão de privacidade. E só lhe restou o que sua mãe, feito um destino impostor, a obrigou a fazer: aceitar em silêncio aquele casamento insano e sem futuro. Corpos unidos e almas separadas por uma enorme distância.


“A Tereza e o Lucas vão se casar” – dizia, perplexa, a metade dos conhecidos e de outros nem tanto assim.


– Como? Aquela que tentou fugir? Vai casar com o Lucas?! Mas não é do Eliseu que ela gosta?! - respondia a outra parte, entre surpresa e preocupada com os resultados que poderiam surgir, frutos desse encontro pouco alvissareiro.


Desastrada na sua raiz, aquela união revelou-se um evento de alta periculosidade. Para acontecer, devia ter exigido um Alvará de funcionamento no lugar do conhecido Proclama de Casamento afixado na porta da igreja.


Casados, Lucas e Tereza sempre brigavam muito. Brigavam por qualquer motivo. Brigavam pela falta de um pretexto para brigar – isso era mórbido. Às vezes, não contentes com toda a agressão verbal, a coisa descambava para a violência física. Por conta disso, certa vez, Heitor, o penúltimo dos cinco filhos, teve de participar da prisão do próprio pai. O fato ganhava espaço na mídia boca-a-boca, com a devida repercussão pela cidade pequena.


Determinados a proteger a mãe, os filhos sempre ficavam do lado dela e contra o pai. A situação gerava conflitos fora do controle para eles, ainda despreparados para conviver com esse clima denso e tenso demais.


Inicialmente, chamavam-no “papai”. Em pouco tempo, Lucas foi transformado em “pai”. Até o momento em que lhe colocaram a reduzida alcunha de “ele”. Assim nomeavam aquela pessoa que perdia significado na vida da casa envolta em tristeza e perplexidade. “Ele”, o pai. “Ele”, o armário. Tudo era apenas isso: “ele”.


O sentimento onipresente contaminava a vida e as coisas mais simples de cada dia. O próprio ar se ressentia de tudo isso e pesava mais. A situação clamava pela ação da justiça. No lugar do amor, ela procuraria estabelecer parâmetros técnicos mínimos para uma convivência minimamente possível. Até que, definitivamente, as coisas saíram do controle.

Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. rumarchioni@yahoo.com.br. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao


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