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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Preciso trabalhar

Como era fino aquele rosto! Penso que num raio de 683 quilômetros não seria possível encontrar outro igual. Sobre aqueles traços se apoiava uma peruca, solução artificial que não solucionava nada.

Nem sei por que estou gastando tempo com aquele rosto. Afinal, eu nem precisava guardar seus traços em algum lugar da minha mente, bastante ocupada por prioridades. Mas, já que entrei no assunto, havia aquele rosto do lado do balcão da biblioteca onde eu buscava informações sobre assuntos ligados à Comunicação, mas nem sempre obtinha.

Luana tentava justificar a carência de material, mas nem toda explicação da bibliotecária, que falava mexendo nos olhos, me ajudaria a reforçar a bibliografia do meu trabalho acadêmico, ainda um pouco mirrado.

Algumas quadras longe dali, numa esquina onde carros e motos disputavam o espaço indisponível, entrei no cartório. Queria apenas fazer um reconhecimento de firma. Não sei, mas tive a impressão de que todos os habitantes do bairro haviam se lembrado de que precisavam de algum serviço pra lá de urgente, que poderia ser obtido somente no cartório, naquele cartório em particular e naquele horário. Lá dentro a maquininha que emite a senha não tinha descanso. No balcão, atendiam o cliente número 273.

Finalmente a senha 302 foi chamada. De cara, soube que precisava renovar meu cartão de assinatura, desatualizado fazia um bom tempo. Feita a primeira etapa, fui informado de que a assinatura daquela ficha não conversava com a do RG. Não seria eu o dono da própria marca feita a caneta, com suas pirotecnias aprendidas na adolescência para impressionar? Mudei eu ou mudou o mundo? – foi o que pensei.

Minha mão havia tremido um pouco. Atrapalhei-me na hora de bordar algum detalhe e tive trabalho para provar que eu era eu mesmo e ninguém mais. Consegui me livrar de tudo aquilo. Quando sai chamaram a senha 304 – confesso que nunca vi tamanha rapidez.

No ponto de táxi, três motoristas estavam de plantão. O primeiro me propôs a corrida com preço fechado. Claro que não aceitei. O outro se justificou dizendo que sairia em seguida para levar um cliente ao aeroporto internacional. Mas havia o terceiro, Ivan, um negro encorpado. E ele abriu a porta do carro, depois perguntou sobre o volume do rádio e o ar condicionado. Não falou de política. Não falou de religião. Tinha um minúsculo adesivo com a bandeira do seu time, que foi mantido em silêncio durante toda a viagem.

Tentei entabular uma conversa com o motorista, muito atento ao trânsito, caprichoso e cheio de exigências naquela manhã. O desafio de sobreviver nas ruas da grande cidade era grande demais e Ivan não tinha qualquer disposição para cometer infrações.

Alguns quilômetros depois, um guarda de trânsito fez sinal para que ele parasse. Pediu-lhe os documentos. Ele os entregou. Faltava um, que reapareceu das profundezas da sua velha mochila promocional, meio escondida sob o banco da frente. Ivan estava levemente habituado a essas paradas, porque sabia bem como alguns brancos o enxergavam.

Fomos dispensados, enfim.

Depois de algumas quadras, agora com o trânsito menos estressado, uma mulher de aproximadamente 30 anos, maquiagem carregada e calça de moleton surrada se aproximou.

– Moço, tô pedindo uma ajuda pra comprar leite pra minha filha.

– Deixa ver o que tenho aqui, moça, espera um pouco.

Ivan abriu a carteira, pegou uma nota de cinco reais e a entregou.

– Eu não quero isso, essa merreca não dá pra nada, pô! Eu quero o resto do dinheiro também, rápido, rápido!

Ivan acelerou, ganhou a pista central, por onde fugiu, pedindo urgência máxima.

Para ele, um homem com espírito competidor, a autoconfiança era tudo. Precisava ser. Essa era sua principal arma quando dirigia o carro e a vida. A seu favor, contava com o corpo vigoroso que silenciosamente impunha respeito.

Autoconfiança e determinação acionadas 24 horas por dia. Essa era a forma como agia para atender à necessidade crônica de apreciação; precisava disso. Desejava ser reconhecido como profissional, o que não conseguiu em seu último emprego, numa fábrica de produtos automotivos. Ele não era branco.

Nem sempre estava com a razão, mas insistia em acertar, o que lhe exigia certo esforço para não se tornar um ser humano demasiadamente humano. “Faço o que não quero e não faço o que quero” – esse dilema já se revelou até mesmo no livro sagrado dos cristãos. Ivan não estava a salvo de tudo isso.

– Pronto, moço. Chegamos – ele desligou o carro. Disse que ia tomar um cafezinho, relaxar um pouco, porque o dia estava tenso demais. – Se o amigo não estiver com pressa, lhe convido pra tomar um café – Ivan disse.

– Bom, ainda tenho algum tempo, convite aceito, Ivan – respondi.

A cafeteria estava cheia de sucos de laranja, cafezinhos e pães de queijo, dentre outras coisas. Os aromas se misturavam, e tornavam o ambiente ainda mais acolhedor.

– Um cafezinho pra mim e um pro cavalheiro aqui, por favor – disse Ivan.

– Tenho uma reunião com um cliente daqui a pouco.

– Engraçado...

– O que é engraçado, Ivan?

– Eu tive muitas reuniões com clientes, em salas com ar condicionado. Agora me reúno  no carro ou tomando café. Você é meu cliente. Obrigado por isso.

– Imagina, como empresário, como profissional, você é ótimo, trabalha muito bem.

– Eu me esforço. O ambiente não ajuda, você viu, né?

– É, o ambiente não ajuda, você está certo. Eu já fui assaltado, mas a polícia parece acreditar que tenho todos os documentos do carro seminovo, que ele saiu da concessionária e sempre foi meu.

– Bom, acabou o recreio, preciso trabalhar – disse Ivan, sorrindo.

– Também está na minha hora. A reunião é daqui a pouco. Preciso ir.

Nunca mais tive notícias de Ivan. Um dia resolvi passar pelo mesmo Ponto de Táxi. Ele não estava lá. Conversei com colegas e me disseram que a última vez que o viram havia sido a pouco mais de uma semana, quando estava de saída para levar um cliente até o aeroporto. Sabe-se Deus.

– Qual de vocês pode me atender? Tenho compromisso com hora marcada.

O motorista abriu a porta do carro e a viagem esperou que o semáforo preguiçoso abrisse. Como de costume, o cartório estava cheio. Será que a polícia e a mulher que roubava no semáforo estavam lá?

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