De repente, o lençol azul do quarto principal apareceu com marcas amarelas, cuja procedência era desconhecida. Como fazer conjecturas sobre uma possível autoria sem correr o risco de cometer injustiça com alguma alma boa? Mas era preciso descobrir o que ou quem teria manchado aquela roupa de cama.
Cristiano descansava no alpendre, um olho fechado para se desligar dos sons ambientes naquela casa com uma densidade demográfica em fase de expansão, o outro aberto o suficiente para ouvir os comentários, mesmo aqueles feitos como notas de rodapé.
O pé de acácia estava cheio de vontade de exibir sua cabeça exageradamente amarela e dava o seu show particular. Cristiano fingia o tempo todo estar observando com detalhes a árvore florida que enfeitava a entrada da casa. Agia como espião em sua própria residência.
Por ser repetidamente visto como antiquado, procurava se esquivar de algumas conversas que considerava excessivamente contemporâneas. Não queria o confronto, que poderia terminar em briga ou na obrigação lógica e de bom senso de concordar com ideias que, segundo jurou por Deus, jamais aceitaria.
Ele e seu cabelo cor de café deixaram a varanda e foram até a fruteira. A banana nanica estava doce, docemente gostosa.
De dentro da sala, ouviu sua nora, emitindo algum conceito sobre a convivência naquela casa. Cristiano não teve dúvidas: em silêncio, fez a análise sociológica do que acabara de ouvir – ao menos para isso serviam os anos vividos na universidade. Para ele, aquilo tudo era bem controvertido, não tanto quanto a decisão, meio velada, de atribuir a ele a responsabilidade pela mancha amarela encontrada no lençol pela empregada. O sociólogo pensou longamente nos papéis exercidos por algumas pessoas no grupo humano – por exemplo, noras e empregadas. “Outra vez me colocando na posição de culpado! O El Niño certamente será culpa minha também, êita nóis!” – pensou.
Novamente lembrou-se da situação, quando jovem, em que brincando, apenas brincando com um porquinho o condenou a arrastar as pernas traseiras pelo resto da vida – Cristiano era culpado por isso. O animal logo se acostumou com a sua nova condição, mas a lembrança do fato insistia em não viver em outro lugar que não fosse a mente de Cristiano.
Beatriz foi ao alpendre e perguntou se, por acaso, o sogro deixara uma casca de banana a disposição de pés distraídos, cuja cabeça seria bem acolhida pela quina de uma das colunas. Tudo bem, havia esse perigo, sim, mas ele prontamente a jogaria no lixo – que gente apressada! Aqui vale lembrar que, “prontamente”, neste caso, incluía o espaço entre aquele dia e a próxima vinda de Jesus Cristo. Deus é pai!
Acomodado no cume do poste, o corvo corriqueiro preferiu não se envolver com essas crises familiares. Tanto que jamais cedera à tentação de pousar no pé de acácia, cujos galhos se atirariam imediatamente ao chão, dominados pelo peso da ave, e depois ao castigo da família.
O delineador do rosto de Beatriz estava desmoronando, uma briga sem vitória com o sol. Naquele dia seu nariz amplo a ajudava observar melhor as pessoas – segundo diziam, ele chegava antes do seu corpo onde estavam os fatos. Gente maldosa!
Verdade é que, aproveitando a imagem carregada que o fenômeno lhe dava, aproveitou para se mostrar ainda mais convincente nas insinuações não comprovadas de que Cristiano havia manchado aquele lençol de amarelo. Ele teria agido sozinho ou tivera a seu serviço as flores daquela árvore belíssima?
Já no quarto principal, Beatriz se empenhou ao máximo no retoque da maquiagem, sempre fugindo do espelho quebrado que, para ela, não contribuiria em nada com o seu destino.
Cristiano, que para pagar a faculdade trabalhara como lavador de carro, experimentava uma incômoda sensação de inutilidade. Estava desatualizado e se considerava velho demais para disputar uma vaga no mercado de trabalho, totalmente revirado por novas teorias, em português e inglês, idioma que não dominava.
Por vezes Cristiano gostava de demonstrar o quanto sabia sobre o uso do sarcasmo, sempre que isso servisse para neutralizar a força do inimigo, ainda que se tratasse de uma pessoa querida.
Apertando ainda mais os olhos estreitos, ele decidiu que, sorrateiramente, conseguiria resolver o problema da mancha misteriosa no lençol da cama do casal. Lembrou-se de que, em algum canto da garagem, alguém havia esquecido uma garrafa de água sanitária. Do alto de sua longa experiência e das teorias obtidas, enquanto escutava discretamente as conversas domésticas, concluiu que aquele líquido o livraria dessas acusações inverídicas, segundo ele.
Exatamente naquele instante, Cristiano ouviu um inocente helicóptero sobrevoando a área e logo se escondeu, certo de que se tratava da picape de George, seu filho mais velho, que adorava o elemento surpresa em tudo o que fazia, sobretudo quando chegava mais cedo do trabalho. “Que diabos esse menino está fazendo aqui, justo agora!?” – pensou.
Entrando pelos fundos da casa, Cristiano foi, pé ante pé, até o quarto e desnudou a cama. Compactou o lençol com todo seu poder de síntese, e o levou até a garagem – talvez ninguém o tenha percebido, inclusive o filho inesperado.
A bacia estava no chão. Dentro dela, ele colocou uma boa dose de alvejante. A decisão de correr o risco, tentando conseguir o “menos ruim”, estava bem alojada em sua cabeça. Ele mergulhou lá dentro o lençol que se orgulhava do seu azul celeste, invejado por peças de cama de outras cores.
Deu-se a tragédia. O tecido travara uma briga inglória com aquele líquido cheio de violência e avesso às cores, quaisquer que fossem elas. Perdeu. Perdeu feio. Sem esperar, o azul foi se retirando de mansinho, enquanto o tecido ganhava uma cor esbranquiçada e irregular – como afirmar que lá estava todo o impulso criativo de Cristiano, um homem pouco afeito à produção de arte, especialidade da nora?
Beatriz ouviu um barulho, vindo da garagem. Ouviu o som da bacia, mas logo se distraiu e sua atenção fora capturada pelo helicóptero que voltara a sobrevoar o local. Foi para dentro. George lhe perguntou o que o pai fazia na garagem. Sem resposta.
Rapidamente Cristiano compactou o lençol molhado e colocou-o embaixo do braço. Por sorte a chave do carro estava no bolso. Gritou que havia se esquecido de pegar alguma coisa no centro da cidade e correu pra lá, o alvejante alterando levemente a cor do estofamento do automóvel.
Procurou por uma loja especializada em roupa de cama. Mostrou o lençol molhado para a primeira vendedora, cuja própria roupa viveu momentos de perigo. Queria um igual àquele. Mas o produto estava em falta, só chegaria na próxima semana. Havia apenas outro, de outra marca e modelo, num azul levemente distinto do original. Cristiano aceitou levá-lo.
Em casa, ele o colocou sobre a cama, serviço cuja qualidade jamais seria aprovada nem mesmo num hotel duas estrelas ou coisa parecida.
Alojou-se novamente no alpendre, na mesma rede, os olhos inquietos voltados para a imagem do pé de acácia, com seu amarelo bem mais forte e bonito que aquele que o sociólogo aposentado tentara esconder. Essa cor trazia presságios que preferia esquecer.
Beatriz e George entraram no quarto. Enquanto conversavam, a esposa lhe mostrara o novo quadro que acabara de pintar. O marido fez uma observação sobre o quanto achava bonita a cor do lençol. Ela concordou. Disse que os pais dele o haviam comprado poucos dias atrás, porque o acharam lindo e, além de tudo, estava em promoção. George os admirou pelo bom gosto quando o assunto era decoração. Felizmente os olhos de artista plástica de Beatriz estavam de férias, longe de qualquer preocupação com assuntos de estética.
A noite todos dormiram muito bem. Inclusive o novo lençol, feliz por conquistar o seu espaço naquela casa. Cristiano fez tudo para abafar o caso. Só se esqueceu de esconder a bacia com alvejante. Deu-se nova tragédia. ≡
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