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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Palavras desafinadas

Moacyr estava em aula no conservatório musical. Um raio do sol das dez horas atingiu o relógio de parede colocado à direita do DVD player.


Tenso como sempre e levado pelo ciúme que sentiu em relação à Virgínia, Moacyr discutiu com o professor de História da Música. Com o suor escorrendo pelo rosto fino e a pele desigual, usou a voz forte de tenor para dar ênfase às expressões racistas, mais ou menos comuns ao seu repertório. Mais uma vez, naquele dia, Moacyr desafinou no uso da linguagem e saiu do ritmo, ateando fogo ao sonho de se apresentar num teatro lotado, matéria de capa em alguma revista segmentada.


– Eu sinto muito, mas não posso aceitar o seu comportamento. Não é a primeira vez, lembra?

– Mas, diretor, o professor sempre privilegia essa mocinha! – disse Moacyr.

– Essa “mocinha”? Talvez ela tenha um nome! – respondeu o diretor, tirando os óculos.

– Tudo bem, desculpa, foi mal, pô! – disse Moacyr.

– É, “foi mal”. E pra encerrar, eu não posso manter você aqui. Vou pedir pra secretaria cuidar disso.


Quando ouviu a decisão final, suas pernas foram sacudidas por um terremoto e os lábios secos se tornaram o retrato de um deserto.


Voltou, pegou sua bolsa e esqueceu uma caneta Lamy, presente do pai, emprestada a um colega. Foi até a janela com passos desconexos, acompanhados por olhares perplexos. Voltou e saiu da sala, batendo a porta – com o impacto, o pequeno enfeite que remetia ao tema da festa junina, celebrada há dois dias, despencou. Essa era uma das maneiras usadas por ele para demonstrar a importância que dava à autoexpressão, chegando a pensar que isso lhe garantia o direito de dizer o que bem entendesse. Afora esse detalhe, Moacyr alimentava um medo secreto de ficar mudo, o que não contribuía em nada com o seu comportamento.


O gosto pela rebeldia vinha de longe, quando no intervalo entre as aulas enganava a servente e se escondia em algum canto da imensa escola para fugir de alguma atividade. Isso durou algum tempo, até o dia em que foi descoberto pela diretora e levou para casa um bilhete convidando os pais para uma conversinha bastante promissora. Ser rebelde, não importava a causa, havia se transformado em algo como a sua filosofia de vida. Era assim a sua arte quando interpretava uma canção.


Mas Moacyr não aceitou o que aconteceu.

– Doutor, eu quero que o senhor entre com uma ação contra o conservatório onde meu filho estudava – disse o pai ao advogado.

– E vamos alegar o quê?

– Vamos alegar que ele foi expulso injustamente. Pronto. Vamos alegar que ele foi tratado com discriminação pelo professor.

– Tem algum exemplo concreto disso, alguma prova que o incrimine? – perguntou o advogado.

– Meu filho dizia que o tal professor sempre brincava com uma característica física dele, o cabelo crespo estilo moicano. Isso é preconceito. Preconceito racial.

– Eu vou cuidar disso. Demora um pouco, a Justiça é lenta, mas assim que tiver uma resposta eu entro em contato com o senhor – disse o advogado, dirigindo-se até a porta.


Moacyr preparou-se para aguardar um possível retorno aos estudos. Como o caso ainda não havia sido resolvido, o aluno afastado aproveitava o tempo de sobra, aquele que usaria estudando na escola, para ir até um parque próximo à sua casa e tocar violino a quem desejasse ouvir. Seus olhos enfadonhos, semiescondidos por óculos quase escuros, olhavam com uma esperança desconfortável aquilo que parecia ser uma espécie de público rotativo, gente curiosa que apenas fazia uma breve parada para ouvi-lo sem ingresso nem compromisso. Discretamente viu uma borboleta que pousou numa árvore semicoberta de flores tímidas e amareladas pelo sol forte dos últimos dias.


Então chegou o inverno e ele se ausentou. Supostamente estava trancado em casa, onde as paredes tinham ouvidos e o teto, as portas e as janelas não cumpriam sua tarefa no acordo de abafar o som do instrumento que ainda nem era totalmente seu, porque duas prestações estavam atrasadas.


A lei do silêncio foi esquecida um dia após o outro.

– Você gosta de cantar e tocar, não é? Tem uma voz forte. Bonita – disse o vizinho que acabara de se mudar.

– O senhor gostou? Eu canto em casamentos... – respondeu ele.

– Ótimo, quando precisar... Mas enquanto isso a gente gostaria de poder dormir – disse com uma calma perigosamente calculada.


Mas de nada adiantou falar com ele.

– Senhor síndico, meu problema é o morador do 137. Ele até canta bem, mas é que a gente não consegue mais dormir – disse ele.

– Ah, sei. O 137 de novo. Você não é o primeiro a reclamar. Eu vou tomar providências, fique tranquilo – disse.


E então veio nova onda de silêncio, agora motivada pela ausência do violino. Moacyr nunca mais discutiu com o professor. Nem teve ciúmes de Virgínia, que depois foi tocar bem longe dali. Nem tocou na praça. Nem incomodou os vizinhos. Em silêncio, por lazer e compromisso assumido consigo mesmo, via apresentações de grandes orquestras na televisão. Com afinação apurada e sem perder o ritmo, o umidificador de ar garantindo a uniformidade da temperatura ambiente, assoviava algumas notas musicais.


O ingresso em outro conservatório podia acontecer quando menos esperasse. Ou não. Moacyr esperançava.

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