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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Palavra-colibri

Sempre que ouvia a algazarra dos passarinhos disputando cada galho das árvores que rodeavam a casa, Vicente se lembrava da sua última visita à casa dos pais, e isso por vezes o tirava do chão por alguns instantes. O encontro aconteceu antes do início da nova temporada de gravações no exterior. Viveu momentos em que a tensão parecia roubar a cena. Desejava escrever sobre essa experiência. Não agora. Talvez agora. Sei lá.


Faltavam duas horas para o almoço, quando ele fechou a jaqueta cáqui, colocou um cachecol, presente da ex-namorada, arrumou o cabelo atrás da orelha e saiu para dar uma volta. Tomaria uma estrada de terra, terra seca, com o devido cuidado para deixar que os carros passassem e a sua segurança física não corresse qualquer risco além da poeira inevitável. Ser atropelado apenas porque estava ocupado com lembranças de um passado, que ficou no passado, não faria o menor sentido. Não desejava se ocupar com esse tipo de coisa. Principalmente, porque o serviço de resgate acabaria por comprometer sua concentração naquilo que contava de verdade. Voltar empoeirado já seria suficiente. Mas o propósito foi mais exigente do que ele imaginava.


Andou mais de dois quilômetros até que um bar atravessou seu trajeto. O estabelecimento era indispensável depois de uma caminhada entre buracos e pedras. Poderia seguir em frente, mas seria punido pela sede. O bar estava com as portas bem abertas, quase vazio e acolhedor. Levou Vicente para dentro e o colocou numa das mesas ao fundo. Confesso que nunca vi um lugar gentil como aquele. Vicente viveu um choque; o layout daquele ambiente não conversava com ele, mas era o único disponível.


As portas eram feitas de madeira rústica; o chão, de cimento queimado. Lá dentro, alguma claridade era garantida por um lustre em eterna manutenção. Tudo falou de algo familiar a Vicente. Trouxe de volta memórias afetivas da casa dos avós, na antiga fazenda da sua infância. De modo alternado, em cada mesa havia um vaso com plantas artificiais. Eram miosótis e camélia e todas se empenhavam em parecer que foram colhidas num campo visitado por abelhas, orvalho e raios de sol. O barulho do freezer enferrujado encobria a possível música sertaneja tocada ao fundo pelo rádio. Que pecado o descuido com o crucifixo pendente na parede – Jesus deficiente físico, com um braço mutilado, e sem providências! Já vi esse filme. Falou consigo mesmo e avaliou sua resistência. Quem venceria a batalha interior? A sede ou a estética?


Inseguro diante dessas questões, Vicente pediu uma porção de batata frita e uma cerveja. Não tinha Heineken. Não tinha Stella Artois. Não tinha Budweiser. Não tinha aquelas marcas alternativas, artesanais, encontradas apenas nas boas casas do ramo. No máximo, o ator poderia escolher qualquer uma, desde que fosse aquela de sempre, a número um entre os que nada entendem desse tema, que ganhou marcas de grife nos últimos anos. Aceitou o desafio e mergulhou numa experiência de resignação.


Para driblar o sabor ordinário da cerveja quase gelada, Vicente pediu o reforço de uma dose de conhaque. Que os fiscais sanitários não nos ouçam, mas as condições de higiene dos copos o deixavam com vontade de improvisar canudinhos de papel. Beirando o teto com marcas de infiltração, um grande e estranho inseto com asas, do tamanho de uma barata, observava a cena, em busca dos melhores ângulos, talvez querendo voar. Vicente se conteve. Não fugiu, como sugeria o instinto natural do ator traumatizado.


Pediu um papel e uma caneta ao garçom. Ganhou um pedaço de papel de embrulho e comprou ali mesmo uma esferográfica de segunda linha. Começou a rabiscar ideias. Puxou lembranças daqui e dali. Visitou novamente o diálogo batido em que os pais deixavam claro sua rejeição à escolha profissional do filho. Queriam que ele fosse “adevogado” ou médico. Mas o garoto foi atingido pelo vírus da dramaturgia. Verdade é que foi contaminado e nunca mais se curou do prazer de representar. Amava ser outras pessoas. Por vezes amava ser ele mesmo ou não ser ele mesmo nunca mais. Falava com amigos como se estivesse diante das câmeras repetindo um script. Até chegar ao extremo de fazer reverência depois de uma fala, que considerava decisiva para fechar uma conversa corriqueira, sobre a atuação do juiz na última partida de futebol. É..., o mundo é feito de todo tipo de gente. Inclusive daquelas que fazem com que todas as linhas se cruzem, chegando por vezes a provocar curtos circuitos previsíveis de alegria ou de tristeza imprevista.


O garçom o observava de longe, com um interesse que, praticamente, o sentava ao lado de Vicente. Queria que os olhos entrassem no texto produzido por ele entre goles de cerveja e de conhaque, um maquiando o sabor insosso do outro e tudo ficando com gosto de subnitrato de pó de nada. Argh!


Criou alguma coragem, apenas trinta por cento do necessário talvez. Deixou de lado o avental que já foi branco. Ensaiou a maneira como o abordaria, agindo como se fosse, também ele, um ator. Cheio de estratégia, avançou com passos calculados. Fazia parecer que caminhava até a outra mesa. Mas ela estava vazia e com saudades eternas de clientes, desaparecidos desde o início da pandemia de Covid e com paradeiro incerto.


– O amigo é escritor? – a pergunta, em que classificava o desconhecido de ‘amigo’, parecia ousada e invasiva demais; mas, paciência, já havia sido lançada, sem a chance de voltar atrás.


Vicente tirou os olhos do papel e por pouco não perdeu aquela palavra que, enfim, acabara de encontrar depois de tanta luta para apanhá-la. Era uma ‘palavra colibri’, dessas que aparecem do nada e somem num instante, antes que a mente sequer tente fotografar seus traços e o sentido que esconde.


– Não sou escritor. Tento ser reescritor. Às vezes consigo. Você escreve? – disse Vicente.

– Já tentei. Não tenho vocação. De vez em quando tomo ‘algumas’ pra ver se a bebida desenferruja as ideias. Mas acho que não tenho ideias. Deixa pra lá... – respondeu o garçom.

– Sobre o que gostaria de escrever? Queria contar alguma história?

– Queria. Queria contar a história do meu filho Eduardo. Mas não sei por onde ele anda.

– Sei. Contaria a história de um vazio, de uma saudade, talvez – disse Vicente, apertando os olhos azulados.

– É. Acho que contaria a história de uma esperança.

– Porque não pega uma cerveja e senta aqui? Tem espaço pra mais um, pegue uma garrafa e um copo. É por minha conta – Vicente desejou ser simpático.

– Não, não posso. Eu ganho pra atender os clientes, não posso beber com eles. Não sei por que estou falando no plural. Os clientes, aqui, são raros. Quando aparecem, não aparecem, apenas ‘aparece’, bem no singular e bem só de vez em quando – desabafou o garçom.

– ‘Bem só de vez em quando’... Vê o seu filho ‘só de vez em quando’ também? – Vicente investigou.

– Não. De vez em quando já seria bastante. Mas vejo aquele ingrato ‘de vez em nunca’. A última vez foi há seis ou sete anos. Só restou uma foto, mas ele não é a foto. Acho que nem se parece em nada com aquela foto. Até a foto já está gasta, parece que também vai embora – disse o garçom.

– ‘Até a foto já está gasta’... Quando seu filho foi embora ele estava gasto, como a foto?

– Ele foi embora porque quis, não estava gasto. Sempre fiz tudo por ele – disse, trêmulo, o garçom.

– O que exatamente gostaria que acontecesse nesse momento? Que ele entrasse por aquela porta e pedisse uma cerveja, um conhaque...? Que perguntasse se você escreve? – disse Vicente, sorrindo.

– Quero uma ligação, pra começar. Que me dê seu paradeiro. Que me diga se ama alguém. Que me chame pra uma visita. Ou que me fale de uma passagem comprada. Que não me falasse a data da viagem, pra não estragar a surpresa. O resto a minha imaginação saberia como criar – disse o garçom, olhando para lugar nenhum, enquanto viajava não se sabe por onde.

– Porque não escreve tudo o que me disse? E depois, meu amigo, deixe sua imaginação escrever o resto.

– Você vai querer mais alguma coisa? O patrão fez sinal pra fechar a conta. Como é domingo, a gente fecha mais cedo. Estou com fome e a minha mulher me espera com um frango de panela. Era o preferido do meu filho. Assim a gente almoça com ele – disse o garçom, mudando o tom de voz.

– Me traz a conta, por favor. Essa conversa me deixou com fome também.

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