Hora do almoço. Fernanda, secretária numa empresa de porte médio, e Lucas, técnico em telecomunicação, passavam o dia em casa.
Eles viviam num bairro afastado do centro da cidade grande, cercados por muitas oportunidades de ignorar os limites colocados pela balança e pela Medicina. Identificavam-se como “acima do peso”, eufemismo para candidatos a conquistar a taça de obesos, em pouco tempo. Fernanda dispunha de olhos castanhos guardados pela moldura discreta do cabelo liso e curtinho. Mais por comodidade do que por estilo, Lucas escondia o rosto claro sob uma barba espessa, quase ruiva e bem cuidada.
A casa onde viviam ficava frente a frente com uma doçaria recheada de provocações feitas com açúcar, chocolate, leite condensado e o que mais os olhos pudessem alcançar. O espaço da casa era despretensioso, comportava o básico para um casal com apenas uma filha.
Naquele dia, Aline, a filha de 10 anos e longos cabelos lisos, não foi à escola. Era feriado.
Juntos, o casal assistia ao telejornal; a filha numa poltrona com os olhos distraídos pelos atrativos disponíveis no celular. De repente, num salto, interrompeu os pais. O motivo parecia bastante sério, até urgente.
Aproximou-se sorrateiramente do pai, que procurava juntar os pontos comuns entre uma e outra notícia. As reformas propostas pelo presidente poderiam alterar o cenário nacional e isso os afetaria diretamente. Ele precisava estar atento.
A garota falou como que confidencialmente.
– Pai, compra um doce de goiaba pra mim?
E completou – Eu mostro qual é... – enquanto esticava o braço que sugeria ter chegado o momento de partirem rumo àquele paraíso de delícias.
Tudo parecia caminhar para um desfecho rápido em favor da menina. Mas, inesperadamente, a campainha tocou. Era uma antiga colega de trabalho de Fernanda que, de passagem por aí, resolveu fazer-lhes uma visita rápida, evento que caberia num cafezinho prosaico e com pouca prosa, não mais do que isso.
Terminado o encontro entre a mãe e a amiga, Aline tentou reiniciar de onde parou. Pediu de novo para que o pai comprasse aquele doce.
Lucas fez ar de dificuldades. Sem entender, a menina tentou interpretar o que viu. Olhou para a mãe, como quem tateia o terreno escorregadio onde pisava. Já sem saber se podia contar com a cumplicidade da mãe, olhou novamente para o pai.
Mais cara de dificuldade. Era como se ela estivesse na área de testes. Quem sabe as coisas se resolvem agora. Por enquanto, não. É que, ao celular, o irmão de Fernanda pedia com urgência que ela repetisse o nome do remédio para dor na coluna. Ele estava na farmácia, mas a anotação havia ficado em casa.
Fernanda conversou rapidamente com o irmão, sob o olhar da filha. Lucas retomou a conversa e aceitou o pedido. Mas colocou uma condição: pedir de novo, mas sem usar a palavra “doce”. Quando tudo parecia estar resolvido, surgiu um novo obstáculo para a menina.
Enquanto isso, Aline sentia-se cada vez mais desafiada. Mas já estava acostumada com essa prática adotada pelos pais. E isso a estimulava. Talvez se enganasse quanto ao nível de dificuldade colocado agora. Ou não. Em todo caso, a menina jogava bem.
Como que se desligando do cenário, Fernanda foi para a cozinha e acomodou-se em um banquinho que atendia pelo nome de cadeira sempre que acontecia uma refeição rápida.
Aline a acompanhou. Sentou-se ao lado. Fernanda lhe perguntou como se sairia dessa. Ao que ela respondeu com uma declarada expressão de “ainda não sei”.
A mãe colocou a mão sobre seu ombro. – É, filha, você tem um problema, precisa resolver isso.
– E como é que eu faço, mamãe? – perguntou, olhos arregalados.
– Bem, você vai ter de pesquisar para encontrar a resposta – a mãe disse, com ar de orientadora.
Tomou-a pela mão e foram para o quarto, onde havia alguns livros, dentre eles, um dicionário de português.
– Que tal se a gente desse uma olhada no dicionário pra procurar uma palavra? – propôs. Com a cabeça, ela fez sinal que sim.
– Ótimo, então pega o dicionário, filha – disse, conduzindo as coisas para que sua menina vivenciasse a experiência de estar no campo de pesquisa. Novamente, Aline fez sinal que sim. Desafio aceito.
– Como é que a gente vai pesquisar? – disse a mãe, pedagogicamente concentrada. E prosseguiu – Bom, você sabe que no dicionário as palavras estão em ordem alfabética.
– Sim – ela disse, resumindo a resposta.
– Procure a palavra “doce”. Achou? – a mãe pressionou levemente, para lembrar outra vez a urgência do assunto.
– Achei. – Aline informou brevemente.
– Ótimo, filha. – disse, cautelosa. E prosseguiu: – Quais palavras têm o mesmo significado?
– “Gu-lo-sei-ma” – a menina leu, tateando a palavra inédita em seu vocabulário e escolhendo-a para continuar aquela empreitada.
– Muito bem – emendou a mãe. – Você se lembra de qual foi o pedido que fez pro papai? O que é que você disse a ele?
– Sim, eu pedi pra comprar um doce pra mim.
– Muito bem, agora é só substituir, trocar a palavra “doce” por essa que você escolheu. Como vai ficar? A resposta veio quando as duas já estavam de volta, na sala.
– Papai, compra uma guloseima de goiaba pra mim?
O pai fez cara de mistério e não disse nada. Novamente, Aline não entendeu. Ele apenas saiu. Pouco tempo depois, voltou com o doce mais gostoso que pôde encontrar. Doce recheado com goiaba.
Mais tarde, no jantar, relembraram e riram de todas as peripécias e do teatro que fizeram, enquanto brincavam de substituir esta ou aquela palavra. Por falar nisso, brincaram também de inverter o responsável por algumas tarefas da casa. Foi engraçado ver Lucas aprendendo a lavar a louça. ≡
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