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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Ora, como direi?

Ele saiu sorrateiramente da área de serviço. Tinha aquela atitude que diz “eu quero ficar na minha”, essas coisas que a todo o momento a gente ouve alguém pensando.

Subiu e subiu ainda mais alto. Atingiu o cume de uma torre plantada ao lado da casa e próxima a uma aroeira que disputava o mesmo espaço. A árvore já havia chegado à terceira idade, mas exibia um corpinho de garota. A torre também. Desativada, exibia pequenas rachaduras, estava envelhecida. Cada um com seu cada um – assim é a vida.

O calor, naquele dia, era infernal. Se o mês de julho havia sido o mais quente de toda a história, como informaram os especialistas em clima, é bem provável que ainda contaremos a alguém que vivemos o dia mais quente daquele mês, desde que o homem saiu da fôrma do Criador. O dia mais quente do período mais quente do ano, na Era da Fervura Global – ninguém merece.

Lá do alto ele avistava a fúria do grande rio, o mesmo que mantinha as torneiras de tantas casas jorrando água. Tinha medo. Quanto avistava a cachoeira, ali bem perto, sentia calafrios. A pressão ameaçava fugir do seu corpo e deixá-lo estirado no chão.

Em situações de perigo, como essa, ele sabia fugir da ameaça iminente. Preferiu descer, não antes de avistar alguma coisa que chamou sua atenção e o deixou intrigado. Se ele entendeu direito, perto do cafezal havia uma velhinha. Ela estava acompanhada pela solidão e desacompanhada de qualquer outra pessoa – até aí, normal?

Mas o que tornava a situação mais dramática é que ela dava todos os sinais de que estava perdida, em apuros. Procurava uma saída. Porém quanto mais lutava contra a desorientação, caminhando de um lado para outro, em círculos que a levava a lugar nenhum, mais fugia de qualquer possibilidade de êxito. O medo tem o poder de aumentar o tamanho até mesmo dos menores perigos. E esse, para ela, era suficientemente grande.

Aquela água toda, reunida no mesmo lugar e correndo cheia de disposição, o amedrontava. Mesmo assim tomou coragem. Caminhou silenciosamente, como somente ele sabia fazer. Foi até o cafezal.

Tentou fazer contato com a velhinha sem rumo. Ela não entendeu sua mensagem. Apenas estava apavorada e queria administrar com exclusividade esse sentimento. Novamente ele disse a mesma coisa. De novo a pobre mulher não entendeu a mensagem, talvez nem tenha ouvido – o medo falava mais alto e ocupava até um terceiro ouvido, o da mente.

Mais uma tentativa. E nada.

Então ele fez menção de sair e voltar para casa, mostrando-se absolutamente seguro quanto à decisão e o rumo que seguiria. Tanto tempo fazendo o mesmo caminho lhe garantiu know how suficiente para andar até de olhos vendados.

Novamente tentou se comunicar com a velhinha. Ela ouviu, mas não entendeu nada.

Por sorte, ele já havia aprendido que na vida é preciso antes perguntar para a velhinha se ela quer mesmo determinada ajuda, antes de se impor como o salvador da pátria. Afinal, nem toda velhinha quer atravessar a rua, por exemplo, como pode sugerir o velho paradigma dos apressados em praticar logo a boa ação do dia – boa para quem?

Ainda que esteja perdida, nem toda velhinha quer seguir a direção do outro, mais ainda se ele é um desconhecido que surge do nada.

No entanto, a comunicação entre os dois se tornou possível, porque havia o gesto que falava sobre a tomada de uma direção e um destino certo.

A velhinha o seguiu. Os passos dele eram curtos, o que era compreensível dado o tamanho das suas pernas. Os passos da velhinha eram curtos, o que era compreensível dada a sua condição física, agora um pouco mais debilitada.

Caminharam juntos. Em silêncio. Às vezes ele tomava o cuidado de olhar para trás, para ter certeza que sua acompanhante o acompanhava.

Algum tempo depois, chegaram a casa onde ele vivia, uma casa antiga, toda vestida de azul, cheia de janelas e de quartos que hospedavam histórias inconfessáveis.

Diante da casa, a velhinha ficou eufórica. Diante da possibilidade de ter encontrado alguma segurança, algum norte, exultou de alegria. Talvez alguém ali pudesse se comunicar com sua família, mas ela havia esquecido o número do único telefone, o da vizinha – apenas uma parte do prefixo não resolvia nada.

A dona da casa a recebeu e deu toda a acolhida que alguém pode esperar numa situação em que se está vulnerável. Providenciou uma calça comprida de algodão, uma blusa de mangas compridas, roupas de baixo, uma toalha mais alta que a nova hóspede, sabonete novo e mostrou-lhe o banheiro, ali no corredor.

Agora experimentando uma reconfortante sensação de alívio, a velhinha se demorou no banho. Estava abraçada pela água morna que parecia disposta a levar para longe todo o medo que se alojava em seu corpo emagrecido e cheio de marcas desenhadas em alto e baixo relevo pelos muitos anos que já vivera. Terminou. “Que diabo, onde está a toalha?!”

Depois, com a alma lavada, devorou o prato de macarronada com frango e tomou um refrigerante bem gelado. E ficou ainda mais feliz quando lhe trouxeram uma pequena tigela com doce cremoso de goiaba revestido por uma camada generosa de chantili. A imagem da sobremesa lembrava um morro coberto de neve, que ela haveria de escalar com a ajuda de uma colher. Mais do que isso, a imagem da sobremesa lembrava o mesmo doce feito pela sua mãe e dividido com os vizinhos.

Enquanto isso, o gato, então vivendo o papel de grande herói, ganhou uma lata de sardinha e uma tigela de leite – gato também é gente! Devorou tudo. Só não falaram sobre a possibilidade de pedir sua beatificação ainda em vida, mas a qualquer momento o assunto poderia entrar na pauta de alguma refeição da família. Cada uma!

Um banho quentinho para ele? “Tudo bem, eu sou herói, mas não força a amizade” – pensou, antes que alguém tivesse uma ideia estapafúrdia como essa.

No mais, e apesar da idade, o felino de pelos brancos e pretos apenas se mostrou à disposição para qualquer força tarefa que viesse pela frente. Mesmo sabendo da sua dificuldade de se comunicar com os humanos, e certo de que o gesto pode ser a linguagem que fala com a mais pura clareza, um recurso disponível até mesmo para os gatos famintos.

O que não se faz por uma boa lata de sardinha regada a leite integral?

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