Martha Aguiar usava uma bermuda amarela quando saiu da festa com o namorado, um jovem empresário que havia conhecido há poucos meses no casamento de um primo. Estava sem os óculos de grau.
Ela exibia um par de lábios e de sobrancelhas muito finas e amava Ildefonso com um amor quase adolescente. Ele era rico e dirigia um Porsche antigo, e também amava Martha, sentindo por ela um amor calculado. Seus cabelos desarrumados em tempo integral, que procurava sem sucesso esconder sob um boné de grife, era a metáfora do seu estilo de vida.
Pararam numa cafeteria. No jardim, foram recebidos pelo gostoso aroma de grama cortada recentemente. Ildefonso tomou um expresso puro, enquanto Martha repetiu o de sempre, café com chantilly.
Enquanto se deliciava com aquela xícara, um monte coberto por uma espessa camada de neve, disse outra vez que precisava perder peso e que a partir de segunda-feira o controle seria rigoroso, seja lá o que isso significasse para ela.
Sua médica já havia feito essa advertência algumas vezes. Mas, entre uma petição e outra, as visitas ao fórum para acompanhar um processo e as seguidas audiências, sempre encontrava espaço para beliscar algum doce e tomar mais um cafezinho. “Indeferido sine die”, seu comportamento dizia à própria saúde.
Ildefonso ouviu novamente o mesmo comentário, enquanto pegava o celular para atender uma ligação fora da pauta – alguém na empresa o chamava para falar de entraves na importação de matéria-prima.
Atravessaram o trecho que os separava da rodovia. O caminho era feito de alamedas cobertas pelo vermelho das primaveras plantadas por todos os cantos. Ali residiam pássaros e suas canções deliciosamente previsíveis. O mormaço típico do mês de janeiro, os relâmpagos ainda que longe e os traços que havia nos céus falavam de chuva forte com horário a confirmar.
O automóvel tinha sede de estrada. Ildefonso tinha sede de estrada e de vida. Martha parecia não ter sede de nada, estava satisfeita com a maneira como tocava a existência, às vezes previsível, talvez devido a um estranho mergulho numa discreta resignação. Orgulhava-se da profissão, dos cachos do seu cabelo castanho e da cor de porcelana de que era feita sua pele.
– Você não está correndo muito? – disse Martha, com a voz distante do próprio corpo.
– Estou sendo obrigado pelo carro e pela estrada – respondeu Ildefonso, movido por um desejo quase insano de se manter jovem aos olhos da namorada e da humanidade; o grisalho da barba não colaborava em nada com esse projeto.
– Não sabia que carros e estradas têm tanto poder – disse Martha.
– Tem. Ouça o ronco do motor – disse, pisando ainda mais fundo no acelerador.
– Retiro o que eu disse. Acho que você vai precisar correr mais – disse ela. Ildefonso arregalou os olhos, como de costume, para confirmar uma peculiaridade que havia se transformado na sua marca.
– “Doutora”, não entendi nada. Tá querendo me confundir? – disse Ildefonso, já sem os óculos de sol e revelando olheiras profundas.
– Não. É que aquela dor na cabeça está voltando. Está forte, agora – disse ela.
Ildefonso juntou as duas emoções, o cuidado com a namorada e o prazer causado pelo acelerador soterrado pela força dos seus pés. Pisou um pouco mais fundo. O Porsche reagiu bem – ele sempre reage muito bem.
Perto dali, a Polícia Rodoviária não gostou nem um pouco dessa alegria fora do controle. Até a alegria tem limites. É que excesso pode acabar em tristeza. O policial usou a caneta e aquele bloco que traz na cintura no exercício do trabalho de controlar emoções excessivas e perigosas. Não era um profissional infeliz, embora usasse muito essa palavra.
– Excesso de velocidade, meu senhor. Infelizmente vou ter de multar. Os documentos do carro, por favor!
– Seu guarda, estou correndo para o Pronto Socorro, tente entender, poxa! – disse Ildefonso.
– Eu entendo. Mas pra ir ao Pronto Socorro o senhor não pode correr o risco de ir para o cemitério! – disse o policial. – O senhor e mais gente, concorda?
– Sim, concordo, mas é a urgência. Minha mulher está mal, precisa de um médico urgente! – argumentou Ildefonso.
– Vá embora, mas respeite os limites de velocidade. É uma rodovia, não é uma pista de corrida...
Ildefonso arrancou, voltou para a estrada e até se esforçou um pouco para não correr tanto. Mas estava certo de que o carro, a estrada e até a namorada pediam mais velocidade.
– Eu sei que o carro e a estrada estão pedindo pra correr. Não precisa. Eu não estou e nunca estive com dor na cabeça.
– “Doutora”, como assim? – respondeu Ildefonso, levemente irritado.
– Como assim? Assim, ora. Eu só queria que você pudesse correr a vontade.
– “Que eu pudesse correr a vontade”? Ficou louca, criatura?
– Tudo bem, eu pago a multa. A multa é por minha conta – respondeu Martha.
– Sei, a multa é por sua conta, mas a questão não é o dinheiro, não é quem paga!
– Você me conhece, eu sou assim, só quis fazer uma gentileza, ajudar você a obedecer ao carro e a estrada. Vontade de carro é como vontade de juiz: a gente cumpre.
– Quer dizer que se “a senhora” sentir vontade de... – deixa pra lá! – disse Ildefonso.
– Deixa pra lá, é melhor... – Martha desconversou. Que tal um drink assim que entrarmos na cidade? Pronto, esse você paga.
– Às vezes tenho medo de você, sua louca. Você é louca – disse, a voz marcada com certa dose de ternura e cumplicidade.
Ildefonso adorava correr, e até uma pseudo “forte dor na cabeça” se justificava para atender este anseio por velocidade, correndo não se sabe para onde, sem ideia de onde deveria parar.
Oito quilômetros depois, enquanto o resto de sol fazia as malas para brilhar no Japão, entraram na cidade. Estavam exaustos. Outra vez o celular chamou Ildefonso, e era urgente. Ele deveria pegar o caminho de volta para casa. Os motivos não foram revelados.
Não sei o que aconteceu. Se alguém perguntar, é bem provável que ele enfie o pé no acelerador. Sua vida queria muita estrada, qualquer forma de ir para qualquer lugar. Ou para lugar nenhum. ≡
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