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Foto do escritorRubens Marchioni

■ O velho e o saxofone.

O sabiá-laranjeira estava atrapalhado, o pobrezinho. Confuso com tanta luz da cidade grande, já não sabia distinguir entre dia e noite. Para ele, a qualquer momento havia chegado o momento certo para iniciar sua cantata. Meia noite, meio dia, tanto faz. “Vai que de repente eu acerto!” – pensava.

No pequeno pomar da antiga casa, encravada num lugar de pouca gente e muito poste, o pessegueiro estava florido. O Google me disse apenas que “O pessegueiro tem raízes, inicialmente, pivotantes; posteriormente elas se ramificam lateralmente, tornando-se numerosas, extensas e pouco profundas. São de coloração alaranjada e possuem lenticelas bem evidentes. A zona de exploração do sistema radicular vai muito além da área de projeção da copa”, o que não faço a menor ideia do que seja, mas deve ser verdade, então vamos em frente; quem sou eu para questionar a poderosa plataforma que soube se tornar essencial à vida?

Com todos esses atributos, que o sabiá dominava tanto quanto eu, ele gostava de pousar ali, talvez por acreditar que aquele palco era adequado à sua canção de todo santo dia.

Na casa velha, Giordano e Adelaide tentavam dormir – ele se lembrava dos tempos em que era garimpeiro e muitas vezes dormir significava um luxo. A insônia era uma constante na vida do casal, ele com 72 e ela com 68 anos bem vividos, 45 dos quais bem juntinhos, amassando barro e tocando em frente. Depois de tantas preocupações e cuidados, agora era a vez de manter as atenções voltadas para os netos, empenhando-se para que tivessem uma vida cheia de muita alegria, saúde, tranquilidade e de muitas vitórias.

Talvez o ruído provocado pelo aquecedor de segunda mão funcionasse mais como despertador, lembrando-os de que já não era hora de dormir. Isso sem contar a claridade, vinda de luzes potentes plantadas numa praça ao lado, que penetrava a janela do quarto. Naquela noite a Lua teria saído de cena e alguns relâmpagos perdidos no céu contribuíram para iluminar ainda mais o cômodo vulnerável.

Giordano e Adelaide dormiram um pouco. Sonharam muito e tiveram pesadelos de rotina, um inconveniente que havia se tornado presença quase diária em suas vidas noturnas. E eles acreditavam sinceramente que a solução para o problema devia chegar, sim, mas apenas uma semana antes da Missa de Sétimo de cada um. Por falar nisso, Giordano sofria com um medo crônico de morrer ou, pelo menos, de ir embora antes de fazer umas tantas coisas que ainda estavam pendentes em sua agenda, e deixar Adelaide sem a sua proteção. Entregaram pra Deus.

Quando se levantaram, havia um nevoeiro – êita tempo doido! Tomaram o café rotineiro, feito de frutas, pão e leite integral, manteiga, geleia, bolo e mais alguma coisa. Na atribuição de funções, Giordano ficou encarregado de lavar a louça do café, preparado por ele, tarefa que só desempenhava com a sua boina quase centenária – dizia que dava sorte.

- Adelaide, onde está o meu chinelo? Você viu onde eu deixei o cachimbo? Saco! – Giordano disse balançando a cabeça de um lado para outro, peculiaridade que já o frequentava há alguns anos.

Adelaide não respondeu imediatamente. Estava outra vez muito ocupada, lavando de novo as louças ou os talheres que usariam no almoço, mesmo estando todos bem limpos. Repetia essa prática sempre tomando um cuidado excessivo para não sujar o vestido estampado de grandes flores violetas e amarelas.

Quanto ao paradeiro do cachimbo, depois de muito barulho ele foi encontrado onde sempre ficava: numa pequena mesa da sala de jantar, ao lado de um aparador feito de ferro, ou na velha máquina de costura, e tudo teria sido resolvido muito rápido se Giordano tivesse olhado melhor antes de incomodar Adelaide.

Ele sentou-se por um instante na cadeira de balanço, ao lado da cortina desbotada da sala e perto da janela com vista para uma avenida pacata. Talvez a pele com enrugamento esbranquiçado tenha ganhado esse desenho e aparência por causa dessas e outras que prefiro não contar.

Depois o marido agitado foi para o quarto e pegou o saxofone, o velho saxofone, que já havia pertencido ao pai, em eras longínquas que se perderam no tempo. As mãos quadradas de Giordano o acalentavam com o cuidado que se tem com algo nobre. Colocou um disco de vinil na vitrola Telefunken – aquele ritual era uma espécie de aquecimento. Sentou-te numa banqueta, alinhou o bigode e, ali mesmo, começou a tocar.

Giordano não estava confuso com o horário, as luzes da cidade grande não o atrapalhavam e julgou que aquele era o melhor momento para desenterrar antigas canções aprendidas na juventude. Não conseguiu deixar de se lembrar do sonho adolescente de aprender a tocar acordeom, instrumento vendido às pressas para cobrir despesas muito mais urgentes. Do instrumento só foi salva uma foto, no seu colo, agora acomodada num porta retrato feito de prata, descansando sobre a máquina de costura decorativa.

Quando saiu, tropeçou no tapete que cobria boa parte do corredor e quase foi ao chão – por sorte, a ideia de colocar uma escada com acesso para o lado de fora da casa havia sido retirada do projeto na última reforma. Levantou-se e imediatamente teve uma ideia. Dentro da calça de moletom surrada e que em nada combinava com a cor da jaqueta cáqui, foi até a sala de jantar, pegou um caderno e, ali mesmo, começou a compor uma música cujo tema era os tropeços e as quedas encontrados pela vida afora.

Adelaide, que discutia consigo mesma sobre o que fazer para o almoço, ouviu seus primeiros ensaios. Aqui e ali, identificou notas e frases melódicas que a remetiam para lembranças de canções ouvidas no passado. Estaria Giordano criando um pout-porri? Adelaide pensou que sim. Mas também pensou que não. Ficou em dúvida, uma dúvida nada sonora.

Feliz da vida por sentir que a veia de compositor continuava intacta, ele seguiu em frente. Anotou, tocou, voltou atrás, fez novas anotações, tocou, corrigiu, tentou de outro jeito, tocou e parou por um instante. Giordano havia terminado o rascunho de uma música composta de fragmentos de várias outras. Mas em nenhum momento se deu conta disso. Inocente, plagiou aqui e ali, Deus seja louvado!

Também feliz da vida, improvisou uma apresentação cujo público era composto por nada menos que Adelaide. Ela ouviu com atenção e generosidade. Não disse nada, apenas deixou que Giordano se sentisse feliz pela canção que, para ele, era rigorosamente inédita. Aplaudiu, abraçou-o com um misto de tristeza, analisou o cardápio do restaurante e fez o pedido: duas panquecas, uma de queijo e outra de calabresa, pratos que seriam acompanhados por um delicioso suco de banana. Depois do almoço, ela iria ao cabeleireiro dar um jeito na franja, que já não conversava com o formato do rosto agora mais recheado e redondo.

Adelaide não desafinou. E sabia que nada daquilo era inédito, tampouco autoral.

Meio confuso, um sabiá laranjeira cantou lá fora avisando que o nevoeiro havia se dissipado. A pequena videira, as espadas de São Jorge, as acácias, as orquídeas amarelas e o cravo do mato que moravam por aí e vez por outra recebiam a visita rápida de um colibri, agradeceram a gentileza climática. E agora os netos do casal, ele com nove e ela com 11 anos, podiam ir lá fora, no jardim em frente à varanda, jogar peteca, o que faziam sempre com uma alegria renovada.

Giordano ajeitou-se na rede de descanso e cochilou sem qualquer compromisso, ao som do canto dos pássaros.

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