Com medo de chegar atrasado à escola, o menino, que caiu na rua, levantou-se e saiu correndo.
Por causa da sua pressa, ele esbarrou em uma senhora idosa. Leonor carregava uma sacola cheia de frutas. Levava também o peso do corpo e umas dores na coluna que a martirizava. A colisão frontal teve todos os ingredientes para jogá-la no chão, não tivesse sido amparada pelo muro.
– Cuidado, menino! Não olha onde anda?! – gritou Leonor. O garoto já ia longe, não viu nem ouviu nada.
André pulou buracos. Desviou de árvores. Escapou do carro em alta velocidade. Por pouco não caiu de novo. O primeiro tombo foi suficiente. Quase não chegou antes que a professora fechasse a porta.
Com o joelho sangrando, alguns minutos depois André já estava na escola. Só percebeu o ferimento quando uma colega chamou sua atenção. André olhou para ela com atitude de superioridade, aquilo não era nada. A garota não poderia ter na sua frente a imagem de uma criatura abatida. Para ele, um homem feito, com nada menos de 12 anos bem vividos, isso não contribuía em nada para a sua imagem pública – foi o que aprendeu. Não saberia como lidar com os comentários e gracejos da turma - “Eu, um marica que se preocupa com um machucadinho?” – pensou.
Enquanto isso, em casa, Leonor, ainda assustada, contou para o marido como foi atropelada por um garoto apressado. Estava um pouco nervosa, mas já se divertia com a situação inesperada. Só depois se daria conta de que falou demais, deu informações além do que era considerado saudável naquela circunstância. Oscar, um corretor aposentado por motivo de saúde, não assimilaria bem aquela história.
Sua reação foi instantânea. Disse que iria falar com os pais do menino, pedindo uma punição para o filho desastrado. Estava furioso.
– No meu tempo não era assim. A gente respeitava os mais velhos – gritou.
– Eu sei, eu sei. Mas agora fica calmo, homem de Deus. Fica calmo! – Leonor respondeu, tentando se conter, mas sendo apenas um ser humano. Tentou impedi-lo, mas ele insistiu na ideia.
Sentindo-se no dever de manter a palavra empenhada, porque também ele era homem, Oscar saiu para cumprir o que prometeu primeiro a si mesmo – era uma questão de honra.
Na rua, por acaso, o corretor encontrou Heloísa, a mãe do garoto. Cumprimentaram-se e ele foi logo contando o que havia acontecido e como o menino havia fugido do local sem prestar socorro. Oscar estava furioso e sequer tentava disfarçar seu estresse. Talvez, em sua opinião, aquele rapazinho devesse prestar serviços comunitários para reparar o seu grande erro.
Silenciosamente Heloísa reprovou a falta de cuidado por parte do filho. Mas ficou perplexa com a forma agressiva como foi abordada pelo vizinho naquela circunstância. Talvez por vício de profissão, a Fonoaudióloga pesou cada palavra dita por aquele senhor descontrolado.
Ela se desculpou. Disse que o filho certamente não teria agido daquela maneira por mal – coisa de criança. Garantiu que falaria com ele, assim que chegasse da escola. E que também falaria com o marido, logo mais a noite.
Oscar fez com a cabeça que sim e saiu sem dar uma palavra, como às vezes fazia no seu trabalho. Entretanto, seu silêncio repentino causava preocupação. O fogo parecia ter sido controlado, mas existem as brasas. Acostumadas a enganar os olhos humanos, elas se escondem com maestria sob as cinzas. Heloísa sempre ouvia histórias da vida real, sabia detalhes sobre a relação homem e fogo.
A mãe de André entrou em casa e guardava a bolsa quando o celular a chamou. Era a Coordenadora da escola onde o garoto estudava. Pediu que fosse buscá-lo, porque estava com o joelho machucado e precisaria de cuidados que no momento a escola não poderia oferecer. A enfermaria estava fechada por falta de funcionário. “O caso é grave? Já estou indo, já chegou aí. Até logo. Obrigada por avisar. Até logo.” – disse, afobada, coordenando objetos e sentimentos.
Com medo de ser repreendido, o menino insistiu em que estava bem e não queria sair da escola. Até disse que logo mais teria uma aula importante – veja só. Por pouco não convenceu a mãe, orgulhosa do compromisso do garoto com os sagrados deveres de estudante aplicado.
De volta do Pronto Socorro, Heloísa e André passaram pela casa de Leonor, a fim de se desculparem. Para ela, essa era uma atitude pedagógica, em que aproveitaria um incidente para ensinar ao filho o valor da responsabilidade. Na prática, desejava que ele pedisse desculpas pessoalmente. E que vivesse a experiência de ouvir uma vítima, sabendo colocar-se no lugar dela.
Sozinha em casa, Leonor os recebeu com serenidade. Ouviu as justificativas de ambos e disse que estava bem. Aproveitou e desculpou-se da decisão do marido de falar com ela. Não sabia que Oscar a havia abordado na rua e, pior ainda, de um jeito nada cavalheiro.
Mal acabaram de sair, o marido chegou. Havia tentado, sem sucesso, vender uma pequena casa.
– Sabe quem acabou de sair daqui? Heloísa, mãe daquele menino que me atropelou, o nome dele é André. Ele veio também – disse ao marido. – Mas tudo foi resolvido, pronto, passou.
Oscar não aceitou o que ouviu. Para ele, ninguém teria de falar com sua mulher e se desculpar, nada disso. Queria falar com o pai do garoto porque, ele sim, teria uma compreensão mais clara dos fatos. Também porque o pai seria mais firme, segundo acreditava, usaria sua condição de homem para aplicar um castigo à altura ao filho. Sem contar que chamaria a atenção da esposa, mostrando que nada do que fizeram estava certo. “Desculpas não resolvem, precisa tomar uma providência, punir esse menino” – esbravejou.
Daniel, Heloísa e o filho jantavam quando a campainha tocou. Era Oscar, o homem furioso. Queria falar com o marido de Heloísa. A esposa não entendeu o que estava acontecendo. Para ela, tudo estava resolvido. “Que droga! Outra vez a mesma coisa?!”
Daniel tentou afastar a esposa e assumir a conversa. Heloísa reagiu e se manteve exatamente no mesmo lugar. Permaneceu ali, com os braços cruzados e uma expressão tensa.
– Sua mulher tem um temperamento difícil – disse ele.
Dessa vez foi Daniel quem reagiu frente à ousadia do furioso, esforçando-se por debelar as primeiras chamas do que poderia se converter em novo incêndio. Pediu que se retirasse. Oscar saiu, batendo porta, portão e palavras.
Daniel, Heloisa e o filho voltaram para a mesa. O jantar recém-servido estava frio. O menino pediu desculpa aos pais.
Pouco depois a campainha tocou. Era Leonor.
– Por favor, desculpem pelo transtorno. A gente ainda não teve como comprar o remédio do meu marido. Vou ver o que faço. Não vai acontecer de novo, prometo – disse ela, quase solene.
– Me diga quanto falta – insistiu Heloísa. A fonoaudióloga tinha uma voz pausada e calma. – Ou deixe a receita comigo – sugeriu.
Leonor aceitou a oferta. Foi embora e o mundo seguiu seu caminho, respeitando a rotina rotineira.
– Obrigado por comprar esse remédio. Ele é o mais caro. Depois, quando sair o pagamento da aposentadoria, nós vamos até sua casa – Leonor prometeu.
O dia fechou sua cortina. ≡
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