Depois que terminou a audiência de piano, Eugênio fez o de sempre: foi até a frente do palco e, com a reverência que a situação exigia, agradeceu os aplausos que foram muitos e o mergulharam num sentimento de realização pessoal. Seus olhos cor de conhaque ganharam um tom cheio de um brilho singular. Mais uma vez a sua necessidade de escolher os planos para realizar seus sonhos, objetivos e valores atingiram sua meta. Sua conquista bem merecia uma obra de Tchaikovsky ao fundo.
No entanto, algumas vaias rasgaram o espaço beatificado pelas canções que fluíram da genialidade de Beethoven e Bach. O gesto insano maculou a sensação de leveza de uma plateia grata pela oportunidade de banhar-se naquela experiência.
Aparentemente, Martin, um antigo desafeto de Eugênio, era um lobo solitário naquele concerto. As vaias foram puxadas por ele. Como sempre, estava paramentado com um colete surrado e com o mesmo cravo rosa também de sempre.
Naquele dia, Martin esqueceu-se de qualquer coisa ligada à sua paixão pela música erudita e seu desejo frustrado de se tornar um virtuose. Junto de amigos, apenas queria estar disponível para a missão de estragar o brilho, em alto relevo, do espetáculo esperado fazia tempo.
Eugênio ignorou tudo aquilo. Agiu assim porque sabia que a sua obra estava acima de qualquer afronta dessa natureza, sobretudo quando feita por alguém que nem é do ramo. Sentiu que dessa vez havia lançado pérolas a alguns porcos e que elas foram pisadas e, depois disso, os animais se voltaram contra ele.
O pianista foi para o camarim e saboreou alguns morangos recebidos de um velho amigo. As frutas acariciavam-lhe o paladar. Também havia fatias geladas de abacaxi, que ele preferiu deixar, fugindo da sua acidez muito acentuada.
Conversou com pessoas. Ouviu histórias que falavam de desejos e de frustrações no campo da música.
Depois saiu e foi a um restaurante.
No celular, pesquisou um detalhe específico sobre a obra de um compositor italiano. Eugênio queria saber sobre a maneira como o músico harmonizava sons aparentemente distintos demais para trabalharem juntos.
Com a agudeza e rapidez extrema de um falcão e enxergando longe como se fosse um deles, Eugênio pegou ali mesmo uma partitura em branco e começou a compor e compunha com entrega, desaparecendo entre notas musicais, entrelaçando sons e melodias, regendo e escrevendo como se estivesse em transe.
Voltou para casa, de taxi para não experimentar o medo de dirigir. Como de costume, não entrou com os sapatos usados na rua – jamais conviveria com uma coisa dessas.
Tomou banho e um cafezinho feito na antiga cafeteira italiana e evitou qualquer coisa que para ele soasse como perda de tempo. Abriu um livro que estava entre dezenas de outros, protegidos por um armário antigo, folheou e examinou apenas as páginas 214 e 215. Depois, com o charuto de praxe, entregou-se ao piano. Tocou. Na sala que agora havia sido transformada em palco, tocou na alma de pessoas imaginárias. As notas musicais agudas fatiavam o espaço do ambiente como se fossem navalhas cheias de atitude.
Martin, que morava no apartamento à direita, não gostou e acionou alguns amigos. O vizinho da esquerda reprovou a sessão de música que não desejava ouvir para não ficar comovido além do que considerava saudável. O vizinho de cima ligou para a Portaria do prédio; o de baixo já havia feito uma nova reclamação e pedido providências contra o pianista entregue aos braços da música. A orquestra do mal, regida por Martin, estava a pleno vapor, e executava um espetáculo dantesco de demolição.
Providências foram tomadas. Valdir, o guarda responsável pela segurança noturna, apertou a campainha do apartamento de Eugênio.
– Boa noite, tudo bem com o senhor?
Eugênio logo o reconheceu pelo cabelo cor de açúcar mascavo.
– Sim, tudo bem. Quer entrar?
– Não. É que alguns vizinhos estão reclamando do barulho.
– Sim, eu sei. Seu guarda, o senhor gosta de música?
– Gosto. Quando eu era criança meu pai até me deu um violão.
– Aprendeu a tocar?
– Aprendi alguma coisa. Não desisti. A gente não podia pagar, sabe como é...
– Traga o violão um dia desses – ele ainda está com o senhor?
– Tá, bem guardadinho, lembrança do meu pai, tá guardado. De vez em quando eu pego pra não enferrujar o gosto.
No dia seguinte, Valdir estava de folga. Foi ao apartamento de Eugênio e jantaram falando de música.
Depois do jantar, onde degustaram um bom vinho e um licor de primeira linha, com a devida moderação, colocaram piano e violão para conversar. O piano de Eugênio falava mais, empolgava-se e dava a entender que todos aqueles teclados eram insuficientes. O artista demonstrava alguns recursos que produziam efeitos sonoros capazes de sugerir uma experiência no paraíso. O diálogo entre os instrumentos aconteceu com o frescor e euforia de um primeiro encontro.
Mariano apertou a campainha.
– Boa noite, tudo bem com o senhor?
– Sim, tudo bem. Quer entrar?
– Não. É que alguns vizinhos estão reclamando do barulho.
– Sim, eu sei. Seu guarda, o senhor gosta de música?
– Gosto, respondeu Mariano. Quando eu era criança meu pai até me deu um violão. De vez em quando eu pego.
– Quer entrar? O jantar já vai ser servido. Num dia desses, traga seu violão. ≡
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