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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ O oxigênio chegou a tempo

Luciano era um garçom bastante extrovertido, atrás de um bigode muito bem cuidado sobre a boca discreta. Com gestos coordenados, trabalhava duro num restaurante, desses que se escondem em alamedas com jeito de cartão postal, salpicadas por carros importados, boutiques e gente bem vestida.


A toda hora checava as horas, mirando os ponteiros com atenção. Seu andar era cauteloso, por meio do qual transportava o corpo de jogador de basquete. Olhos castanhos e grandes lhe serviam de farol. Tinha personalidade altruísta, que por vezes se misturava com certa ambiguidade. Sentir-se velho? Tratava essa possibilidade como algo desconhecido, tentando provar ao menos para si mesmo que isso jamais lhe aconteceria.


Em silêncio, para evitar interferências, e enquanto checava as horas, seu “toc” mais acentuado, Luciano teve uma ideia: na rua em que morava, num bairro um pouco distante dali, existia um salão, que era alugado para eventos ou preparação deles. Ele o alugaria por um final de semana. No sábado, bem cedo, um grupo de voluntários iniciaria os preparativos para que, no dia seguinte, um almoço fosse servido aos moradores de rua que frequentavam alguns espaços perto de sua casa. Da cabeça para o papel, fez os primeiros traços desse projeto, e ele parecia viável. Em algum momento foi tentado pela possibilidade de fazer algo diferente, lucrativo - “por que não?” – ele pensou.


O número de pessoas, vindas daqui mesmo e de países próximos, e que viviam em situação de risco, parecia aumentar a cada dia. Ele percebia o fenômeno insistente, evidenciado pela presença de sem teto e sem emprego pedindo um prato de comida – “serve qualquer coisa, aquilo que sobrou” -, elas pensavam, conformadas.


Blindado por janelas envidraçadas e desconectado com uma realidade que em nada agradava o senso estético, o poder público não ouvia esses pedidos. Pudera, gente que vive na rua cabe apenas no noticiário de todo santo dia, conhecida de ouvir falar. Gente que morre na rua come mal. Se veste mal. Fala errado. Não dispõe de todos os dentes, e jamais escova os que restaram, de preferência depois das quatro refeições do dia. Existem mulheres que sequer usam absorventes. Gente que vive na rua desconhece etiqueta, fala alto, nunca ouviu falar em agenda, em pauta, um horror! Não cabe em espaços de uma assepsia feita apenas para sair na foto.


Por conta disso, num primeiro momento, Luciano experimentou o receio, o medo de tomar alguma atitude pela qual teria de pagar um alto custo. No entanto, se sentiu desafiado a agir. Compaixão, dúvida e ansiedade se amontoavam em seu interior, todas desejosas de roubar a cena.


Com a cabeça fervendo, ele esperou pelo frescor do outro dia, quando ideias apenas aparentemente esquecidas, esperando pelo trabalho do subconsciente, haviam se recolhido e pensado numa estratégia. A ideia luminosa para uma possível solução apareceu no momento em que ele se barbeava.


Na hora do almoço, falaria com um antigo cliente, por acaso diretor da ONG que gerenciava o salão. Conversa rápida, sem deixar de, a todo o momento, verificar as horas e arrumar os óculos com a ponta dos dedos.


Luciano recebeu orientações básicas. O diretor recomendou que ele fosse estratégico, tivesse uma calma estudada para não queimar nenhum passo, recuando se necessário para ganhar força e terreno. O garçom se animou com o que ouviu do cliente, agora consultor. Consultor e parceiro, ao abrir mão de qualquer custo e ceder gratuitamente o espaço para viabilizar esse projeto de caráter social.


O almoço aconteceu num sábado ensolarado, sob as nuvens carrancudas da pandemia. Naquele dia estava quente, um calor que desejava ao menos ser um outono, mas sofria a censura imposta pelo clima pouco disposto a ceder. Uma árvore pacata mantinha imóvel as suas folhas, e a grama seca, pedindo ao menos um pouco de água, quebrava-se sob os pés descuidados de quem negligenciava a advertência para que ela não fosse pisada.


No salão, o piso de cimento batido avisava se tratar de um terreno pronto e disposto a receber profissionais e ingredientes para preparar uma grande refeição, ainda que sem pretensões. Um pequeno corredor separava os dois ambientes, o social e o de serviço. Por ele se chegava à cozinha, modesta e profissionalmente equipada. As paredes eram de tijolo a vista, dando a tudo um toque rústico. E as portas e janelas antigas, feitas em madeira coberta por uma tinta azul opaca, sob um telhado alto e inclinado, se encarregavam de manter o frescor necessário para o convívio de profissionais no período de trabalho. Apenas uma gravura desbotada, Girassóis, se acomodava, esquecida, tentando ser vista por alguma alma um pouco mais atenciosa, por favor. Lá dentro, as pessoas viajavam para suas casas de origem, e isso às vezes lhes fazia bem.


Homens e mulheres. Crianças, jovens e adultos, inicialmente protegidas pela máscara recebida na entrada do estabelecimento. Muito barulho. O som de pratos e talheres se misturando com o vozerio desorganizado, todos falando ao mesmo tempo, a taxa de decibéis nas alturas. A garrafa que caiu. Música e alguma dança. Risadas. Recordações de um tempo que havia se perdido no tempo. Demonstrações de gratidão, tudo se atropelando, até o momento em que restou apenas o grupo da limpeza e todo trabalho duro. Mais precisamente, o grupo da limpeza e a jovem Doralina, somente ela, conhecida de lugar nenhum, que permaneceu no salão, sobre pés descalços e um sorriso perdido, sem traços de alegria ou de tristeza.


Mas alguma coisa fugiu ao controle de Luciano e da sua equipe. O fato é que, passados alguns dias, ele foi informado de que um dos seus assistentes de cozinha e uma jovem que trabalhou na animação das pessoas testaram positivo para a Covid. Como raramente acontecia, ele conferiu as horas e arrumou os óculos com a ponta dos dedos. Sentou-se para administrar as pernas trêmulas à procura de um chão que agora lhe fugia dos pés. Teria sido aquele o melhor jeito de aliviar a fome dessas pessoas? O conflito estava colocado.


Naquele dia, Luciano voltou mais cedo para casa e redesenhou o trajeto para o trabalho. As pessoas que viviam na rua trataram de seguir em busca de alimento para o corpo e para a alma. O outono chegou, as folhas caíram e, em silêncio, adubaram a terra onde seriam plantadas novas sementes. Persistente, Luciano usou cada minuto elaborando novamente sua experiência, para lhe dar novo sentido.


O oxigênio chegou a tempo.


Ἅspas”– Falando sobre abandonos, o romancista britânico Lawrence Durrell disse que já abandonou centenas de ideias. Ele tenta escrever um bloco de dez mil palavras e, se não consegue, tenta outra vez. Não é tão difícil.

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