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■ O desencontro

  • Foto do escritor: Rubens Marchioni
    Rubens Marchioni
  • 24 de ago. de 2022
  • 4 min de leitura

No aeroporto movimentado da capital, Amábile encontrou um antigo chefe. Era Narciso, um biomédico que certo dia a preteriu numa promoção quando trabalhavam numa grande empresa do ramo farmacêutico. O que à época se comentava pelos corredores tinha a ver com um prejulgamento feito em relação a ela, com decisão sumária, sem direito de defesa, ‘e não se fala mais nisso’.


Amábile tomou um taxi e dirigiu-se para uma antiga casa de retiro, a 27 quilômetros dali. Estava tensa depois do reencontro desencontrado. O retoque sem resultado da maquiagem, as muitas vezes em que ajeitou o colar, os brincos e os cabelos de comprimento médio atestavam as condições do seu estado emocional.


Naquela chácara, fugindo da correria diária, enquanto amenizava os efeitos do estresse e buscava o equilíbrio físico, mental e espiritual, um grupo de pessoas desejava viver uma experiência de descanso, reflexão e reconexão espiritual.


Aquela era a oportunidade de aumentar o autoconhecimento, identificar os pontos da personalidade que precisavam ser trabalhados, refletir sobre acontecimentos ligados a familiares, além daqueles de caráter pessoal, social e profissional.


A programação seria iniciada logo mais à noite, com duração prevista para o final de semana prolongado. Dessa vez, o Carnaval ficaria lá fora, bem distante. A avenida seria outra.


Quando ia se instalar no quarto onde ficaria durante o evento, Narciso passou por ela e fez uma saudação discreta e sem jeito. De estatura média e expressão autoritária, tinha barba por fazer e usava mocassim marrom, que combinava com o velho suspensório. Ele também participaria do retiro.


Cada um aproveitou a seu modo o tempo disponível antes do jantar. Conheceram detalhes da chácara, com seus espaços inspiradores. A lista incluía um centro comunitário com sofás, TV e almofadas convidativas. Além de biblioteca, bosque, horta, pomar e um lindo jardim enfeitado também por vasos de hortênsia. Ao fundo, um viveiro abastecia a casa com ovos e carne, por vezes presentes em uma das quatro refeições diárias, pensadas por uma nutricionista voluntária.


Tudo contribuía para que a experiência de relaxamento, descanso e aprendizado se tornasse mais completa e inesquecível.


Durante o jantar, no piano despretensioso, alguém executava canções que mais pareciam um sussurro, sob a luz de lanternas e candelabros. Lá fora, ouvia-se apenas o pequeno som emitido pelo roçar do vento com as árvores, que mantinha em repouso o antigo ventilador. Não se sabe por que, Amábile e Narciso sentaram-se à mesma mesa, na companhia de um casal que tiveram o prazer de conhecer. Mesmo acompanhados, o clima entre eles não foi dos melhores. Mas os dois teriam de conviver nesses dias de retiro, cada um no seu quadrado.


Não por acaso, o tema da conversa foi a tendência humana de fazer prejulgamento e as suas consequências para a convivência entre as pessoas. Uma sondagem do terreno?


Narciso sentiu que o assunto trazido por Amábile para a mesa entrava naquele terreno percorrido pelos dois, quando trabalhavam na mesma empresa, ela na condição de subordinada e ele fazendo escolhas a partir de critérios meramente pessoais.


A breve abertura do encontro, com as apresentações de praxe, aconteceu às 20h30, como estava previsto.

Em seguida, todos se recolheram para seus quartos. O novo dia os esperava com uma agenda bastante intensa – palestras, trabalhos, conversas em minigrupos, momentos de partilha de experiências, reflexões, períodos de silêncio e isolamento, além das pausas para cafezinho, almoço e algum descanso físico. Ufa!


No dia seguinte, para fazer a abertura da segunda parte do programa, veio o primeiro anúncio:

– Eu vou convidar para a primeira reflexão do dia, nossa amiga Amábile, Assistente Social que arranjou um espaço na sua agenda para estar aqui. Ela vai falar sobre o tema “O prejulgamento e suas consequências”, assunto que foi objeto de estudo em sua dissertação de mestrado – concluiu – Obrigado, Amábile. O espaço é seu.


Houve aplauso vindo de todos os lados. Menos de Narciso, que demonstrou claramente o quanto se sentia constrangido com tudo aquilo. Talvez aprendesse ali o que já deveria saber há muito tempo.


Dentro de um vestido que se harmonizava com a echarpe verde com detalhes em vermelho, Amábile falou durante cinquenta minutos sobre o tema. Na intimidade, ela também desejava obter reconhecimento pelo desempenho no palco. Queria ser vista como um grande nome no mundo das palestras sobre desenvolvimento humano.


Sua voz era suave e os gestos, contidos. Falou com uma postura de mentora experiente, apesar da sua pouca idade, para encarnar a imagem da mestra à moda de Joseph Campbell. O objetivo da palestra era fazer com que, no final, os participantes estivessem mais preparados para lidar com seus relacionamentos e com os desafios do dia a dia, repletos de situações que favorecem o prejulgamento. Aproximando-se do final da sua fala, perguntou à plateia se alguém já havia vivido a experiência de praticar ou sofrer com esse tipo de comportamento.


Narciso se levantou e relatou sua experiência vivida no ambiente de trabalho. Chegou mesmo a dizer como agiu na ocasião, e a maneira como prejudicou alguém ao boicotar sua promoção.


Amábile aproveitou expressões que acabara de ouvir e a partir delas começou a fechar o assunto. Apresentou com ênfase algumas propostas práticas, que os participantes deveriam levar para o resto do encontro e para a vida fora dali. Por exemplo, sugeriu que, em qualquer caso, agente ou paciente, o ideal seria procurar pela pessoa que foi vítima da situação e ao menos tentar reparar o erro.


Amábile e Narciso não chegaram a se falar durante o resto do evento. Mas regressaram no mesmo avião. “Não sei se vale a pena falar com ela”, Narciso pensou, enquanto se acomodava junto à janela. Dormiu. Começaria aí uma viagem que, devido a mudanças do clima, agora chuvoso, duraria bem mais que o tempo regular. Amábile era feita de corpo, alma, tensão e olhos abertos.


Avisos silenciosos alertavam para a necessidade de muita calma nessa hora. Sobretudo, era indispensável manter a atenção em alguns sinais e respeitar o antigo protocolo que diz: “Em caso de despressurização da cabine, máscaras cairão automaticamente à sua frente. Coloque primeiro a sua e só então auxilie quem estiver ao seu lado”. Mais ainda naquela ocasião de possível turbulência.


A torre autorizou a decolagem.

 
 
 

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