Renato era mais cristão do que Jesus Cristo, eis o comentário que corria. “Essa gente tem mania de me crucificar. Tudo bem, com Jesus também foi assim.” – pensava. Insistia em não assumir que, para ele, a religião era mais importante do que todo o resto, ou quase isso.
Mesmo sabendo de eventuais riscos de atritos pessoais, aceitou o convite para um jantar com amigos ateus, naquela sexta-feira cheia de verão. E foi o primeiro a chegar para o encontro marcado.
No restaurante, amassando a ponta da toalha que cobria a mesa até sentir dor nos dedos, Renato esperava pelos três amigos.
Naquele ambiente convidativo e natalino, com aromas que provocavam todas as possibilidades do olfato, ele pediria o prato que sempre o levou de volta à sua terra no interior: peixe à Belle Meunière, com a porção generosa de alcaparras que sempre acontecia por aí.
Fora isso, aproveitaria para relaxar depois de um dia tenso de trabalho como terapeuta num hospital, onde ajudava a tratar problemas musculares que negavam aos seus pacientes o direito de terem movimentos livres.
Os amigos chegaram – dois ateus e um cristão. Até certa altura, a conversa caminhou sem qualquer obstáculo. Falavam de pandemia e negacionismo. Falavam de viagens que não decolaram e da maneira como improvisaram alguma porção de lazer.
A ansiedade de Renato só fazia crescer. Ele não sabia como encaixar a sua crença religiosa naquele encontro com pessoas das quais gostava, mas que não professavam a fé cristã. Mantendo o hábito, ajeitou novamente a barba falha e o bigode curto, enquanto buscava alguma sensação de relaxamento que não veio.
Antes de começarem a comer, propôs a oração que fazia no início de toda refeição. Falou com certa cautela, escolhendo as palavras para não criar atritos ou constrangimentos desnecessários.
Agindo de maneira inconsciente e mecânica, um dos amigos o olhou com desdém. O olhar foi dividido com os demais em busca de aprovação. Através dele, o rapaz demonstrava sua descrença naquela prática cristã.
Apesar do cuidado, os outros não puderam evitar a resposta silenciosa que estampavam nos olhos. Ela falava de concordância velada entre eles. É certo que acreditavam na pretensa neutralidade. Mas os olhos têm o péssimo hábito de revelar a alma e incriminar. O clima ficou pesado, e a sensação geral de constrangimento foi inevitável.
Silêncio caudaloso. Renato olhou nos olhos de cada um. Seu medo de rejeição e sua necessidade de ser aceito gritaram. Ele estava surpreso com a atitude daquelas pessoas tão próximas e que sempre lhe pareceram equilibradas em tudo. Verdade é que nem mesmo o amigo cristão, dividido, conseguiu disfarçar. Claro, ele não queria magoar ninguém, e tomar partido trazia esse risco inevitável. A decisão poderia ser pouco estratégica num tempo de tamanho desemprego.
Quanto aos dois ateus, eles até ensaiaram uma tentativa de desfazer a imagem borrada que passaram, sem sucesso. Todo o trabalho de edição, todos os cortes e todas as explicações, nada disso adiantou.
Renato se manteve irredutível. Coçou a cabeça e ajeitou a barba. Agindo de maneira brusca, demonstrou com clareza a sua reprovação. Levantou-se e fez menção de ir embora. Não queria impor sua crença, mas também não desejava abrir mão do que considerava essencial em sua vida. Era um servidor assíduo da religião e levava a sério esse compromisso.
Inesperadamente, Renato resolveu ficar. Mas não bebeu nada. Nem comeu nada. Seu comportamento era um protesto claro e se tornou indigesto para todos.
Depois do encontro fracassado, foi para casa jantar. Chegou mais cedo do que o previsto. Mas era tarde demais para encontrar comida quente e alguém à mesa.
Repetindo o ritual diário, antes de entrar em casa se livrou dos sapatos usados na rua. Sozinho fez a oração de praxe e jantou uma refeição acanhada e solitária. ≡
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