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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ O confronto

Sem compromissos a cumprir naquele feriado com cara de nada, Edgar aceitou o convite de Lúcia, vice-diretora da escola e de um professor, seus amigos, para um café da tarde. O sociólogo se juntaria a outros profissionais da casa nesse encontro informal, desses que se faz para jogar fora um pouco de tanta conversa presa pelas grades da agenda. Na frente da cafeteria, os galhos de uma jabuticabeira escondiam uma borboleta sem rumo, que foi pousar no vaso de comigo-ninguém-pode e também não quis ficar. Aquele novembro estava particularmente cheio de um verão antecipado.

Brincando de coerência, alguém sugeriu que se sentaria na antiga carteira escolar que agora decorava aquele ponto de encontro. Apenas ficou em dúvida quanto à carteira ou a cadeira de balanço entristecida pelo tempo. Nenhuma das duas, pronto.

De repente, e sem se dar conta, Edgar se viu dentro de uma conversa também informal. Era apenas um bate papo despretensioso. Ninguém pretendia definir os rumos da Educação no universo nos próximos trezentos anos. O relógio eletrônico fixo na parede marcava aquilo que prendia a atenção de Edgar mais do que a de outro ser humano qualquer: 15 horas e 15 minutos do dia 15. Para quem valorizava tanto a praticidade, isso não significava um traço capaz de confirmar essa postura.

Atraídos por algumas palavras definidoras, outros foram se juntando. Todos falavam, e nada do que falavam se transformaria em cláusula pétrea.

Com o rosto claro, emoldurado por cabelos curtos e presos por um laço da cor de caramelo, Lúcia olhou para o pequeno grupo. Depois dirigiu os olhos para Edgar, uma câmera dando close num rosto desconhecido da maioria.

– Pessoal, já que o assunto é Educação, vocês não acham que seria interessante ouvir as opiniões de alguém que não é da área?

Todos fizeram que sim. O olhar de quem está distante do tema poderia revelar coisas que os galhos daquela árvore talvez não estivessem percebendo, pelo simples fato de não terem o mesmo distanciamento de Edgar. Ele aceitou dar algumas opiniões, também despretensiosas. Afinal, era só uma conversa informal.

– Bom, pessoal, eu não sou professor, mas vou dizer o que penso... – embora vacilante, Edgar estava levemente orgulhoso por ser objeto de interesse. Ao menos aí ele seria ouvido sem interrupções.

– É por isso mesmo que nós queremos te ouvir, entendeu? Entre nós a gente vê e fala sempre a mesma coisa. Vamos diversificar. Agora é com você.

Com o medo de engasgar que por vezes se atravessava em seu caminho, por um instante Andréia tirou o foco de Lúcia e de Edgar e fez uma panorâmica do grupo ao acrescentar um questionamento que a incluía, enquanto ajeitava a mochila na cadeira.

– Esse exercício de diversificar é interessante. Na teoria. Na prática a gente acaba preferindo não se envolver – a começar por mim. Eu sei como a gente funciona – prosseguiu Andréia, que sempre fazia algum autoquestionamento. – Mas fala, Edgar.

– Quem sabe... – disse Marcelo, movido pelo antigo receio de ouvir críticas e perder os holofotes. E prosseguiu.

– Então, Edgar, fala um problema sério que você vê na Educação hoje.

Todos olharam com interesse para Edgar. De certa forma, estavam pagando pra ver. Na média, havia mais curiosidade no grupo do que interesse numa tempestade de ideias que levasse a algo novo. Mas, se é pra jogar conversa fora, tudo era válido naquela quase reunião, típico vício de profissão.

Seu medo crônico de lugar fechado era muito maior que o leve medo de falar, disfarçado com a busca das melhores condições para dizer alguma coisa a mais de duas pessoas. Edgar se ajeitou na cadeira. Ia falar. Limpou a garganta. Ia falar. Procurou o melhor ângulo. Ia falar. Coçou o nariz. Apertou os olhos estreitos. Falou.

– Um problema sério que eu vejo é que alguns professores aceitaram nivelar por baixo o nível de exigência em relação aos alunos. Meu irmão é professor e está sempre preocupado em agradar o aluno.

Para enfrentar aquele tema indigesto, cada um tratou de assumir os melhores recursos de oratória, falando como se fizessem uma palestra: palavras escolhidas, frases bem formuladas e voz impostada.

– Sei, e porque os professores estariam agindo assim? – perguntou Lúcia.

– Talvez estejam preocupados em agradar alunos e pais, seus patrões... Ou seus clientes, como querem alguns.

– E o que eles ganhariam com isso? – perguntou Andréia, num tom mediador, ao mesmo tempo em que procurava explorar e tornar mais claras algumas ideias.

– Evitariam dor de cabeça. Por exemplo, não seriam mal avaliados pela direção e não manchariam seu prontuário – disse Edgar.

– Manchar o prontuário? Explique melhor, por favor, Edgar – disse Lúcia.

– É isso, alguns pais veem a escola como uma empresa. Se enxergarem alguma coisa que não aprovam na hora, podem até acionar a Justiça – eu já vi isso acontecer. Parece que quase todos os pais viraram especialistas em Educação e patrões. E o pobre professor fica marcado na escola. Isso, quando ele não vai pra rua – esclareceu.

Todos os presentes pareciam concordar. Menos Marcelo, que por acaso havia aprendido alguns conceitos de marketing, na antiga faculdade, antes de ir para a sala de aula ensinar Língua Portuguesa.

– Tudo bem, mas os professores são pagos pelos alunos, isso é verdade. Portanto, devem fazer todo o possível para agradá-los. É assim nas empresas que trabalham para conquistar e fidelizar clientes – Marcelo repetiu o jargão de sempre. E prosseguiu, com a hostilidade costumeira e o desejo de fugir ao confronto quando julgasse conveniente.

– Quem é que paga o salário dos professores? Os pais dos alunos, não é isso? – a camisa de manga curta já dava sinais do suor que começava a deslizar para a barriga. Controlou o impulso de correr para o banheiro e lavar as mãos novamente, o que havia feito há longos 20 minutos.

Edgar não se convenceu da resposta de Marcelo, embora a tivesse respeitado. Afinal, todos têm direito de ter e expressar suas opiniões. Liberdade de expressão. Mas tentou argumentar, usando com cautela a sua tendência de impor algumas verdades prontas.

– Claro, o professor deve agradar os alunos. Como? Dando a eles o que existe de melhor na sua área. Sendo honestos. Entregando o melhor, superando expectativas... Fazendo com que eles cresçam. E não apenas fazendo as vontades de cada um, como se fossem seus súditos – disse Lúcia.

– A escola, na sua essência, não é uma empresa – disse Andréia. Embora fosse adepta de toda forma de inovação, recusava-se a aceitar jargões que poderiam ser desmontados sem nenhum esforço.

– Andréia, seu cabelo descolorido está muito bonito hoje. Me diga: como a escola não é uma empresa, claro que é?! – Marcelo reagiu.

– Não é. A escola é o lugar onde se ensina conceitos, forma pessoas. Inclusive pra saber lidar com empresas de maneira justa – disse Edgar.

– Já sei, você vai “filosofar”. Mas filosofia não resolve, meu amigo – disse, levantando de novo o dedo indicador.

– Às vezes, filosofar ajuda quando se quer chegar à essência das coisas, e não repetir apenas o senso comum – disse. E prosseguiu.

– Como eu dizia, a escola ensina conceitos, mostra como transformá-los em prática e oferece as razões para que a ação aconteça, embasada em valores permanentes.

– Você fala bonito, mas a escola é uma empresa. Uma empresa que faz tudo isso aí – disse Marcelo.

– É que “tudo isso aí” está longe de ser um produto – disse Edgar.

– E qual é a diferença? – disse Marcelo.

– A diferença está nos fins.

– Não entendi, Edgar. Explique isso melhor, por favor – disse Andréia.

– A diferença está na finalidade de um e do outro. Os produtos vendidos pelas empresas têm dois objetivos imediatos: atender necessidades e desejos do momento e obter lucro imediato para os sócios e acionistas. Tudo é para o aqui e agora. Na Educação não é assim.

– E como é na Educação, Edgar? Ou, como deveria ser? – disse Lúcia.

– Na educação é para a vida. Enquanto a empresa trabalha com a ideia de “ter”, pra agora, a escola investe na importância de “ser”, que não tem prazo de validade.

– Dê um exemplo – disse Andréia.

Ter um carro importado é fácil, basta ter dinheiro. É diferente de ser alguém com uma essência construída por meio de valores. Porque essência se constrói por dentro, não se faz do lado de fora, na fábrica. É essência, que dura, não é aparência, que muda de acordo com as circunstâncias, a moda...

– É muita filosofia pro meu gosto – disse Marcelo.

– É, é nessas horas que a gente vê como a Filosofia faz falta na Educação – disse Edgar, num tom crítico.

Veio um silêncio barulhento. Um olhou para o outro. O outro olhou para todos os uns. A vice-diretora pigarreou. Sempre em silêncio, cada um se ajeitou, ajeitou o que estava próximo e dividiram a conta. Em seguida se levantaram e saíram. Sempre em silêncio e desajeitados.

Somente lá fora Andreia pode falar com uma colega sobre os efeitos de um novo creme que usava para a pele.

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