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Foto do escritorRubens Marchioni

■ O conflito derreteu a certeza

A viagem de Henri começou numa tarde sombria e indecisa.


Dias atrás, ele havia conversado longamente com Marcello, um amigo mais velho, que lhe desenhou traços mais precisos para que aquela missão incerta adquirisse contornos definidos.


Cheio de uma segurança que não previa questionamentos, Henri embarcou num aeroporto sem grande expressão. Aos poucos, aquela aeronave se mostrou insuficiente para acomodar a expectativa e a incerteza quanto ao que esperar no seu retorno. Noiva e chefa: quem iniciaria a conversa tão inesperada quanto incômoda?


Duas crises, uma doméstica e outra profissional, se desenhavam no horizonte. Mas era urgente deixar o conforto previsível de todo dia e embrenhar-se pelas incertezas incômodas de um projeto com um desfecho que bem poderia quebrar suas pernas.


“Eu quero fazer essa viagem? Eu devo? Eu posso?” – ele refletiu, e essas três perguntas que orientam a reflexão sobre a ética se divertiam em sua cabeça. Os ruídos que provocava impedia aos sentidos o relaxamento desejado, enquanto alimentava a sensação incerta de dominar os ares.


Falava consigo mesmo, e o diálogo interno escondia as razões visíveis para aquele empreendimento arriscado. O momento nem comportava maiores investigações no terreno desconhecido da alma. Mas, de um jeito ou de outro, era preciso ter um nível muito alto de discernimento. Algo indisponível a quem só contava com um binóculo cuja exatidão da lente estava comprometida por conflitos.


Farmacêutico ainda jovem, do alto dos seus 26 anos, Henri viajou movido por um forte sentimento de cumplicidade. Desejava encontrar a irmã mais velha, Theresa, que tivera o dinheiro e os documentos roubados num assalto e estava impedida de retornar.


Henri levava no celular o que a noiva pretendia que fosse uma mensagem decisiva, capaz de encerrar o assunto e fazê-lo permanecer. Ela era pouco afeita à qualidade desses laços familiares. Considerava-os fortes além do que lhe parecia adequado para os seus interesses pessoais, nem sempre ortodoxos.


Marcello vivia um conflito denso: omitir-se e permanecer no trabalho ou correr o risco de deixar temporariamente a atividade profissional para um exercício de altruísmo? A situação era agravada pela dificuldade de conciliar seus impulsos, alimentados pelos laços de sangue, e o desenho de um futuro casamento que ameaçava derreter, tão frágil era a sua consistência.


Desde o início, Guilhermina, sua gerente na empresa, reprovou a atitude de deixar o trabalho para cuidar de assuntos pessoais.


O jovem gozava de prestígio, havia se tornado quase indispensável, mas ainda assim Guilhermina estudava a sua demissão, o que ainda não fizera por motivos não revelados. Mantê-lo na empresa era uma decisão estratégica para a chefa, agora num dilema inesperado.


Marcello teve com a cidade à qual foi entregue, uma relação igual àquelas que se tem com a indiferença, tão peculiar às multidões de pessoas, prédios, viadutos, carros e lanches artificiais. Depois da breve passagem por um velho e imprevisto mosteiro para desfrutar de um pouco da paz sugerida pelo silêncio calmo do lugar, tomou um taxi, venceu avenidas e chegou ao hotel de quinta categoria onde a irmã desprovida se hospedava e acumulava dívidas.


Foi bem recebido, mas falou pouco. Tomado pelo cansaço, apenas tomou um copo de água e recostou-se no sofá, sempre com o cuidado de não comprometer ainda mais o estado caótico daquele móvel escondido sob remendos explícitos além da conta.


Mensageiro de más notícias, o celular tocou e tocou de novo. Primeiro a noiva, depois a chefa. Henri era convocado a voltar com urgência, sem direito a habeas corpus. O conflito rompeu as paredes e encheu a tarde. Sem sucesso, a irmã procurou tranquilizá-lo.


Henri lembrou a mensagem ouvida no mosteiro. E novamente se perguntou: “Eu quero fazer agora essa viagem de volta? Eu devo? Eu posso?”


Não soube responder.

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