Chovia muito. Chovia muito onde eu vivi na infância, um sítio pequeno o suficiente para acomodar uma pequena plantação de café, uma pequena criação de animais domésticos e um pequeno lucro, que não permitia mais do que levar uma vida modesta, quase espartana.
Minha casa estava plantada a alguns metros do pasto. Do outro lado, já próxima à estrada, havia um barranco feito de terra vermelha, cor oficial da região.
Naquele dia choveu muito. Choveu muito mesmo. A grande árvore, na frente da porta da sala, ameaçou se jogar no chão.
Quando chovia além do previsto, a força da água dava um chega pra lá na vegetação rasteira e empurrava para baixo toda a terra que sua força conseguisse. Além de provocar um inevitável buraco, depois aprofundado pelo serviço de erosão que a natureza faz muito bem.
Nós o chamávamos de “Buracão”. Era um lugar que, passada a tempestade, se transformava em ponto turístico para alguns amigos que não se importavam em olhar até o fundo, mesmo que o medo não os deixasse a vontade pela ousadia sem medida. Crianças sem juízo, aquelas!
Gilberto, que depois frequentou comigo o curso primário, virou Giba e se manteve amigo pela adolescência afora, sentia muito medo de lugares vazios.
Ora, o Buracão era um lugar vazio na sua essência. Não sei por que diabos, a verdade é que o menino com cabelos loiros que desejavam ser vermelhos e um olhar que revelava o quanto se sentia acuado pelo mundo, resolveu que aquele era o dia de nos dar um susto.
Deu. Talvez certo de que tínhamos o dia inteiro pra cuidar desse tipo de situação, o safado decidiu que sentiria tontura e deixaria a força da gravidade puxá-lo para baixo. Caiu, bateu o braço contra o barro e lá ficou, imóvel feito um pedaço de pau.
Como se dirigisse uma viatura do Corpo de Bombeiros, voei baixinho até a casa dos pais dele, a 200 metros dali. Comecei a falar com o homem de bigode avantajado e a barba eternamente por fazer. Mas, sem que eu terminasse, ele logo me interrompeu, com aquele ar de pai preocupado e sem tempo, dizendo que o Gilberto não estava em casa, tinha ido ver o Buracão.
– Seu Dorival, ele está lá dentro do Buracão.
– Mas o que ele foi fazer lá dentro?
– Não sei, seu Dorival, ele caiu, é, ele caiu...
– Caiu!? Como ele caiu? Alguém derrubou o menino? – ô gente sem juízo! As sobrancelhas do homem ficaram ainda mais pesadas, acho até que bateram o recorde mundial.
– Não, seu Dorival, ele caiu sozinho.
– O Giba escorregou?
– Acho que sim.
– Como, “acho que sim”, moleque? Você não estava lá? Não viu tudo? Então como é que você não sabe?!
– Eu não sei, quando eu vi eu não vi mais, pronto, foi assim que foi.
– Tá bom, menino, tá bom, eu vou lá. O Gilberto vai ter o que ele merece. “Não sei por que a mãe dele tinha que viajar justo agora, com essa chuvarada e esse menino solto por aí” – pensou.
Voei baixinho de novo, só que agora com medo da reação de Dorival, dele bater no Giba e na gente também – Estatuto da Criança? Não. Mas ele não ia me alcançar com aquela barrigona de porco velho, e eu com combustível de avião.
– Gilberto, sai já daí, moleque!
Não sei, mas naquelas alturas meu amigo não sabia se era melhor continuar lá dentro, junto da lama e do escuro, ou se optaria por enfrentar o pai, um homem feito de braços fortes, resultado de toda a força física que fazia no carregamento de sacas de café e de arroz.
Dorival jogou uma corda e deu ordens para Gilberto segurar bem firme, que ele ia puxá-lo pra cima. O menino bem que tentou. Mas o braço torcido se recusava a aceitar esse esforço adicional naquele momento.
O pai tentou de novo. Não deu certo. E de novo. E de novo fracassou. Até que teve uma ideia que lhe parecia salvadora: fez um laço com a ponta da corda, algo que lembrava a forca de Tiradentes nas pinturas que conhecemos.
– Filho, se enlaça embaixo do braço e segura firme que eu vou puxar você pra cima.
Gilberto obedeceu. Enfiou-se dentro do laço e o apertou contra o tórax.
– Pronto? Vou puxar, segura firme.
– Pai, tá doendo!
– Tá doendo o que, menino, tá doendo o quê? Fica quieto!
– Tá doendo o braço machucado.
– Tá bom fica aí, fica calmo, filho, eu vou pedir pro seu Carlos me ajudar. Espera aí.
Do lado de fora do Buracão os amigos restantes e com um senso de estratégia baixo demais para lidar com uma situação em que o tombo do garoto podia repercutir em seus traseiros molhados, estavam tensos. Não sabiam se olhavam para Giba, lá no fundo, ou se tremiam – nesse caso lhes faltava a devida coordenação motora – para olhar, não podiam tremer; para tremer não podiam olhar. Fazer tudo ao mesmo tempo? Nem pensar.
A chuva ameaçou cair de novo, o recado veio do alto, travestido de relâmpago, céu escuro e trovão. Tudo o que não poderia acontecer naquela situação seria uma boa chuva aparecer de repente.
Dorival e o vizinho chegaram numa pequena carroça, as duas rodas acorrentadas para enfrentar o barro corriqueiro naquela época cheia de calor e de água. Agora eram dois homens, somando forças.
- Carlos, você trouxe aquela corda com gancho?
– Tá na mão, Dorival.
Com a mesma corda, desceram uma pequena escada até o fundo, nem tão profundo assim, mas tudo fica superlativo quando na história entra um braço machucado e o medo trabalhando juntos.
– Giba, sobe um degrau e agarra na escada, faz o que tô mandando, agarra na escada!
– Pronto, pai. Pode puxar.
– Espera aí, filho, calma aí.
– Joga a corda pra ele, Carlos.
– Giba, desce um pouco da escada e enrosca o gancho no primeiro degrau, você consegue fazer isso?
– Pai, tô com medo...
– Vamos, menino, agora não é hora de ter medo. Tinha que ter tido medo antes, saco!
– Vamos puxar – disse Carlos.
– Vamos, você puxa uma corda e eu puxo a outra, presa no menino. Mas tem que ser tudo ao mesmo tempo, senão ele cai de novo e aí...
- Será que entendi?
- Entendeu sim. Você levanta por baixo e eu puxo pra cima. Vê se usa o nariz grande pra ajudar... – disse Dorival, e riram.
- E vê se essa orelha de elefante pode ajudar também – Carlos respondeu. Riram correndo, como fazem amigos de longuíssima data em missão de salvamento.
– Um, dois, três, já! – disse Dorival.
Do lado de fora ainda havia restado um menino, que não sabia se rezava, se corria ou se ficava por aí mesmo. Seus cabelos estavam mais arrepiados e ainda mais bagunçados.
Gilberto veio à tona. Chegou à superfície do Buracão. Sentiu um doce momento de doce alívio. Tentou se agarrar ao barranco, mas agarrou-se a lugar nenhum. Verdade é que o barranco encharcado cedeu, talvez por não suportar o peso do menino, agora ainda mais pesado devido ao medo acrescentado ao corpo.
Ali não havia o requinte metropolitano de helicóptero sobrevoando a área, a gente apenas via um teco-teco perdido entre nuvens baixas e mandando pra nós só o ronco tímido de seus motores.
Gilberto foi resgatado, ele e sua tremedeira, frente ao olhar surpreso e amedrontado do único amigo restante.
Imediatamente o menino acidentado foi conduzido ao Pronto Socorro do modesto hospital da cidade. Na conhecida Casa de Misericórdia, a maioria dos casos era resolvida pela misericórdia divina, muito mais do que pela tecnologia. Claro, também não vamos condenar a instituição, que, por outro lado, não era todo esse atraso que o prezado leitor pode estar pensando – sem maldade, por favor.
No Pronto Socorro havia sobrado alguns pedaços de gaze e um pouco de gesso, restos do que foi necessário para atender adequadamente o filho mais novo do prefeito dois dias antes.
A enfermeira fez o que foi possível. Dorival e Gilberto voltaram pra casa com uma tranquilidade apenas possível e remédios para comprar. O Buracão foi fechado pela prefeitura, porque era impossível manter por mais tempo aquela situação.
Os meninos se reuniram novamente, a troca de comando foi feita - Giba, “O Experiente”, assumiu.
– Giba, onde a gente vai brincar agora? E quando tiver enchente, onde a gente vai brincar?
– Brincar? Não sei não.
Que brincadeira de mau gosto; que conversa fora de propósito! ≡
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