Antes de sair para celebrar a tradicional missa dos enfermos, o padre recebeu uma ligação. Era um membro do conselho paroquial. A notícia não era das melhores. Um pedido urgente lhes havia sido negado. Na última hora, aquela instituição se recusara a bancar um projeto comunitário.
Sem dinheiro, a igreja não teria como abastecer com alimentos e roupas o antigo centro social, um espaço exíguo que mal acomodava o número de necessitados, sempre crescente, aglomerados em busca de garantir a sobrevivência biológica. O governo? Ah, o governo...! O que esperar do governo?!
Uma pergunta continuava sem resposta: como abastecer e cadastrar tanta gente desempregada e vivendo sem garantias de dispor do pão nosso de cada dia até mesmo para os pequeninos? Poderiam contar com novo milagre da multiplicação? Ele precisava pensar com calma.
Terminada a celebração, o padre logo deixou a igreja e seguiu para casa paroquial. Uma longa agenda o aguardava, a palavra “Urgente” piscando feito sirene em caso de desespero. Quando ia abrir a porta, foi abordado por dois homens, roupa e aparência de mendigo que vive escondido embaixo de um viaduto na cidade grande. Pediram um prato de comida.
Os dois receberam um lanche das mãos do padre. Em seguida, pediram dinheiro para pagar o ônibus e comprar leite para a filha pequena pelo amor de Deus. O padre entregou alguma coisa do pouco que trazia no bolso. Os pedintes recusaram. Com a mão abaixo da cintura, informaram-lhe que aquele valor era insuficiente. Fixaram ali mesmo uma soma impensável num espaço tão curto de tempo. Era preciso intimidá-lo sem demora. Amedrontar, confundir e dominar.
- Me leva até o quarto, playboy – disse um deles, o mais furioso da dupla.
Entraram e não deixaram pedra sobre pedra, nada em lugar nenhum. Roubaram um relógio, relíquia de família. Roubaram hóstias. Roubaram um cálice de ouro. Roubaram um missal, escrito em latim. De quebra e com muita discrição, deixaram-lhe um singelo presente.
Os dois saíram depressa e entraram num carro de luxo estacionado a trinta metros dali e aceleraram. Mas havia um poste no caminho – “o que é que um poste está fazendo aqui numa hora dessas?!” O resgate chegou depressa.
Pouco depois, a polícia chegou à casa paroquial, levada por uma denúncia anônima que falava em práticas pouco cristãs e nada recomendáveis a um ministro religioso. Vasculhou o quarto em sua desordem. Saíram. O padre foi prestar depoimento.
No meio da agitação, ele não teve tempo de se aconselhar com ninguém. Falou muito rapidamente com Deus, mas também não teve tempo suficiente para interpretar e entender melhor a resposta divina, que ele já sabia das páginas dos livros e da prática pastoral.
Ainda no caminho para a delegacia tentou pedir ajuda ao bispo, que estava fora, num congresso programado para terminar no dia seguinte, no final da tarde. O vigário não tinha nada a esconder, embora algo estivesse escondido com certo descuido calculado em sua casa.
Seu advogado chegou. Explicou. Não explicou. Então o padre explicou a explicação dada pelo advogado confuso. O advogado corrigiu o padre – “que Deus me perdoe o sacrilégio” – pensou. Fato é que na cabeça do delegado a conta não fechava. Queria saber a origem e como justificava a presença daquele pó em que a falta de grife era compensada pelo valor estimado beirando as nuvens.
O padre voltou para casa, mas teria de se apresentar para novos depoimentos. Dispensou as pessoas aglomeradas; não teria como atendê-las naquele dia.
Algumas ficaram sem lanche e sem dinheiro para comprar o leite para a filha pequena. A vida teria de esperar ao menos até que um patrocinador se dispusesse a dividir um pouco dos seus bens em favor do outro. Isso, antes que um camelo conseguisse passar pelo buraco de uma agulha.
E José Saramago contaria essa história melhor do que eu, mas ele foi embora antes do combinado. ≡
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