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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ No calor da hora

Respirava-se o calor de janeiro. Ângelo era um adolescente. Do alto dos seus 17 anos bem vividos, mudou-se com a família para a capital, o velho caminhão, feito bandeirante, abrindo estradas a caminho da cidade que abrigaria aquela família quase rural.


Eram pessoas sem intimidade com edifícios, avenidas, congestionamentos, favelas e gente apressadamente apressada para dormir, amar, trabalhar, morrer. Em apenas 24 horas, Ângelo experimentou o impacto de deixar a proximidade de 10 mil pessoas para conviver com a ausência de seis milhões de vultos.


Pouco tempo depois, ele assumiu seu espaço na Igreja católica do bairro, um espaço litúrgico em que as práticas lhe faziam bem ao corpo e à alma. Ingressou num entusiasmado grupo de jovens, onde criaria laços fortes, desenhados pelo aço inoxidável do Evangelho.


A comunidade era dirigida por padres europeus, e os sacerdotes, bastante jovens, traziam a natural dificuldade no manejo do idioma. Naquele templo enorme, recheado de fiéis em cada liturgia, os presbíteros não dispunham de condições para oferecer mensagens que fossem facilmente compreendidas por todos. Para resolver a deficiência decorrente dessa dificuldade de comunicação com os paroquianos, Ângelo foi escalado para fazer a homilia nas duas missas dominicais com maior número de fiéis.


O já experiente locutor, discípulo de oradores, padres, escritores e políticos, agora substituía os ministros da liturgia na tarefa de traduzir com clareza a mensagem bíblica para a comunidade. Com braços que no calor da hora ficavam mais longos, e voz segura, anunciava o essencial à vida com toda persuasão que podia ter.


Entre os líderes religiosos priorizava-se a criatividade na descoberta de novas formas de falar, celebrar, envolver, arrebanhar. Talvez os clérigos não soubessem recitar uma oração em latim, deficiência secundária, que não lhes impedia de tocar na essência do que mais importava, o sagrado, e levá-la a todos quantos se abrissem para essa comunhão.


Em tudo havia uma busca sem tréguas pela autenticidade, por vezes escondida atrás de fórmulas rígidas, apenas esperando por novas oportunidades para se revelar e encantar.


Quase todo o clero, àquela época, era marcado por certos traços que determinavam a beleza de suas ações pastorais em todas as suas dimensões, bem como os resultados obtidos pelo ministério eclesial de cada padre. Era bonito ver um padre em ação. Bonito e gostoso.


Uma versão hippie do sacerdócio ministerial? O que importava era a paz. O que importava era a busca por uma vida mais semelhante a do Messias, o homem bom, de Nazaré, que em nada era visto como revolucionário, beligerante, essas coisas. Assim era a Igreja.


Nesse cenário, o contato e a intimidade de Ângelo com o sagrado só fazia crescer. Além do mais, o jovem gostava de sentir-se pertencente a uma comunidade com objetivos comuns. Ela atendia à sua necessidade de estar ao lado de pessoas com o mesmo foco na empreitada de alterar a paisagem humana com seu cenário desbotado e rotineiro.


Isso determinaria uma decisão radical na sua vida, nos próximos anos. A partir dessa guinada em sua história, a vida tomaria um rumo que se não nega a relação com a mulher, ao menos não a inclui para o convívio conjugal com os adeptos desse novo caminho. O celibato é uma regra implacável. Tão resistente a mudanças que nem a força de um Concílio teve o poder de atualizar. Assim como as baratas, possivelmente resistirá ao impacto de uma bomba atômica.


Também por conta disso, os candidatos a esse novo estilo de vida são “retirados do mundo” e de todas as suas maneiras de buscar a felicidade e bem-estar. A eles é proposta uma nova direção para a vida toda. E uma vez tendo tomado a decisão, estariam no mundo, mas não pertenceriam a ele. Algo como dizer que, no corpo e na alma, não são semelhantes aos outros seres humanos. Um paradoxo incompreensível quando visto pela primeira ou pela centésima primeira vez.


Chegou o dia em que Ângelo foi para o seminário de vocações adultas, movido pelo desejo de se tornar padre. Mas, alguns anos depois, ele se deu conta de que aquela Igreja mudou, e o modelo de sacerdócio que habitava seus sonhos estava desmoronando. Uma nova teologia surgiu e tudo isso mudou muito a forma como via e sentia a missão de evangelizar.


Em que canto estará enterrada a Igreja que antes provocava em Ângelo o gosto pelo ministério sacerdotal a ponto de levá-lo a desejar fazer parte dele?


Sem planejamento, o fim do caminho e a volta para casa, na condição de leigo, foi um acidente ocorrido no pior momento da sua história. Ele coincidia com o choque provocado pela força das águas barrentas e inéditas da globalização e de toda inovação tecnológica, com seu poder de sacudir o mundo e marginalizar os menos preparados. Todas as pessoas da sua faixa etária já estavam a quilômetros de distância, quando ele apenas dava a largada.


Certos processos inconscientes têm raízes muito profundas. Geralmente mais do que se possa imaginar. E embora não tenha havido a falta de tentativas nesse sentido, para Ângelo esse distanciamento crônico nunca mais fora alterado. De certa forma e rigorosamente sem se dar conta ou desejar, ele permaneceria “retirado do mundo”. E desenvolveria um bom relacionamento com a solidão de seus pensamentos e de tarefas introspectivas.


Nesses anos em que se manteve “retirado”, Ângelo foi treinado para estar distante das outras pessoas, embora a missão o colocasse radicalmente entre elas, mas sem qualquer espécie de intimidade. Mais do que isso, ele trouxe uma bagagem interior e tomou decisões que, para o bem ou para o mal, não se encaixavam no mosaico construído durante o mesmo período na teia daqueles que não foram “retirados”.


Em certa medida, Ângelo se manteve retirado. Em certa medida, um monge clandestino e sem mosteiro.

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