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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Mas o portão se fechou

No relógio dos seguranças estava escrito que faltavam poucos minutos para encerrar o prazo. E o relógio seria frio e calculista na sua tarefa de advertir e fazer com que a regra se cumprisse sem qualquer distinção.


Não foi por acaso que Ana Paula quase perdeu as pernas. Em toda aquela disparada entre carros, em alta velocidade, por pouco ela não conquistou um espaço no Resgate, uma fratura, a internação num hospital de classe média alta e a apreensão da mãe cardíaca.


- Ei, mocinha, ei! – gritou o policial em serviço, com a atenção voltada para aquela jovem de corpo compacto, magra e cabelo cor de açúcar mascavo.

– Você não pode passar por aí! Só podia ser mulher mesmo! – insistiu.


- Meu Deus, o que é isso agora?! – gritou um rapaz enquanto pegava a caneta preta, transparente, como mandava o regulamento.


A senhora que vendia refrigerante e pão de queijo se juntou a ele.

- Você viu isso?! E eu pensando que já estávamos no século 21! – disse.


Verdade é que o profissional encarregado da ordem insistia em desorganizar a lógica e o bom senso. Estava enfurecido sabe-se Deus com quê.

– Não me venham com conversinha, senão vai todo mundo em cana! – gritou.


Sob o calor sem cerimônia, a grama da calçada, feita esqueleto ressecado, se transformava em fragmentos sob tantos passos mal pensados.


- Moço, moço, por favor, me deixa entrar, por favor, me... – disse Ana Paula com a costumeira voz rouca de sempre.


Apesar do desespero da retardatária, o portão se preparava para fechar definitivamente, atendendo ao imperativo do relógio. Ele não entendia nada de desespero, era portão demais para se esperar que tivesse ao menos alguma sensibilidade.


Os olhos cor de cacau, acomodados no rosto estreito de Ana Paula, estavam desolados diante da precisão fatal do segurança em parceria com o portão.


Aqueles olhos viram transformar-se em fumaça o que seria a experiência de se pintar para a festa dos “bixos”, a nota nove na prova e no trabalho do outro mês, as pesquisas, os encontros dos mais chegados, dentro da universidade ou naquele boteco onde estudante consegue tomar vodka de terceira linha, em três vezes no cartão, não me pergunte qual. O que seria a preparação e apresentação do TCC para aquele professor imprevisível e a nota ainda mais imprevisível, com direito a convite para emprego. O que seria a festa de formatura. O que seria, enfim, a vida.


Sua autoconfiança cristalizada e seu medo quase crônico do fracasso, não foram suficientes para alterar o gosto áspero e indesejado que sentiu – um gosto de humilhante derrota.


No carrinho ao lado, o cheirinho de pipoca mexeu com suas sensações e lembranças afetivas.

- Pronto, menina triste, aqui estão as imagens, veja – disse aquele aroma.

- Imagens?! Que imagens?!

- As imagens da casa da sua avó. Você não estava lá, agora?


Ana Paula abraçou o próprio corpo. O aroma de pipoca, trazendo cenas de crianças sentadas no colo da avó Lurdes e jogando sujo com os sentimentos dela para ganhar um chocolate, quase na hora do almoço, se alojou por todo o seu corpo e sua mente.


Mas nada disso adiantava. Porque o barulho do portão se fechando diante dos seus olhos a apenas alguns segundos da sua passagem para o campus soou em seus ouvidos como um trovão enfurecido que lhe derrubou o sistema e o manteve fora do ar. Tudo, naquele projeto, havia derretido e se misturava à terra quente.


Pela primeira vez, o namorado ficou desacompanhado, lá dentro. E o exame começaria a seguir.

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