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■ Lugar fechado nunca mais

  • Foto do escritor: Rubens Marchioni
    Rubens Marchioni
  • 1 de dez. de 2021
  • 3 min de leitura

Letícia vivia a experiência de estar de casamento marcado. ele aconteceria em poucas semanas. Na prefeitura, onde trabalhava como Bibliotecária, e tentava esconder até de si mesma o desconforto causado pelo medo de lugar fechado, um colega acabava de chegar com uma caixa mantida em sigilo, e em pouco tempo ninguém mais o viu.


Discretamente, três dias por semana, depois do almoço regado a refrigerante, Letícia passava por uma doçaria bem próxima ao restaurante de mobiliário e cardápio simples.


Lá dentro, automaticamente arqueava a sobrancelha, gesto repetido muitas vezes. E sentia-se impossibilitada de se livrar de algumas tentações de efeito nefasto garantido. A maneira como degustava cada fragmento revelava o prazer sentido, enquanto vivia aquela experiência culinária repetidamente inédita. De volta pra casa, mantinha o hábito de não passar em certos lugares, porque estava convicta de que esse descuido poderia atrair desgraças quando menos imaginasse. A liturgia diária estava completa.


Chegou o dia do casamento. Muitos convidados, porque isso lhe dava a desejada impressão de ser aprovada. E então chegou também a hora de se vestir para a cerimônia, primeiro no cartório, depois na igreja, único manequim para os dois ambientes, o civil e o religioso.


No entanto, triste descoberta, a roupa não entrava. Aquela vestimenta sentia-se incapaz de envolver todo o corpo da noiva. Com bochechas avermelhadas, gestos nem sempre contidos e um rosto claro que mostrava olhos grandes e castanhos, Letícia também ostentava mais costas e nádegas do que o vestido podia esconder. E os braços não haviam ficado mais volumosos por um deslize do destino cruel, que sempre tem costas largas e não pode responder por essa fama descabida. Não bastasse tudo isso, o calor muito forte não contribuía para que o tecido deslizasse pelo seu corpo.


Com o medo antigo de lugar fechado, sentiu-se oprimida dentro daquele tecido escasso que a mantinha confinada. Sem contar que Letícia passou a ver a futura Certidão de Casamento como um mandado de prisão, vivida em regime semiaberto.


No entanto, ela já havia avançado além do que seria razoável a quem precisava deixar uma porta entreaberta. No cartório, operação concluída. Mas, como sair dessa situação opressiva? O conflito estava armado, portanto. “Meu Deus, o que eu estou fazendo aqui?!”, pensou, convivendo com o desejo quase sem êxito de harmonizar objetivos que brigavam entre si. Havia bastante gente por aí.


Próxima parada: a igreja, que a recebeu entre flores e marcha nupcial escolhida a dedo por ela. Nos bancos, familiares, amigos, colegas de trabalho e alguns membros da comunidade religiosa. Do lado de fora, um jardim salpicado de dente-de-leão, com os traços delicados com que envolvia toda a sua fragilidade e falava de liberdade, otimismo, esperança e luz.

No altar, um vestido apertado, metáfora perfeita do que experimentaria neste novo estágio da vida. Durante a festa no clube modesto, a grande caixa lhe foi entregue. A iniciativa secreta do grupo de colegas falava da admiração de todos pela maneira como tratava as pessoas. Em todo o tempo, uma banda local animava o encontro, cantando e tocando músicas dos anos 70. Em todos os espaços, as ameaças sufocantes das medidas do vestido talvez bem intencionado.


Para diluir de uma vez por todas o problema, Letícia pensou em voltar para casa e mudar de roupa. Não adiantaria. Porque iria apenas trocar seis por meia dúzia. Por todos os cantos as pessoas falavam de tudo e falavam de nada. Enquanto isso, a situação a asfixiava, ao colocá-la em viagens mentais capazes de transportá-la para todos os lugares fechados, externos e internos.


Letícia tentou falar com uma das madrinhas, casada, mulher que vivia uma história que desejava ser revista. A amiga a aconselhou, sem grande convicção: permanecer naquela aventura, mais por questões práticas, talvez financeiras, porque nem tudo é como a gente quer, ou dar um rumo libertador ainda que dolorido? Isso foi tudo o que a noiva conseguiu daquele diálogo perdido entre todos os ruídos.


Fim da festa. Começou a rotina, até o dia em que Letícia teve coragem de se desfazer de todas as suas roupas apertadas. O cartão de crédito reagiu, reagiu forte, o orçamento vivendo uma asfixia inédita. Sem dinheiro para qualquer programa fora dos limites das suas paredes domésticas e profissionais, ele a manteve enclausurada.


O medo de lugares fechados se transformou em pavor, um caso clínico com todas as suas complicações.


O casamento de Letícia era um lugar fechado. Ela precisava derrubar paredes.


Ἅspas” – Tudo que um escritor escreve é, de certo modo, autobiográfico, disse Truman Capote. Segundo ele, algumas coisas, na escrita, são sugeridas por incidentes ou personagens reais, o que não exclui esse aspecto. Confirmando a teoria, Capote lembra que no caso de Other Voices, Other Rooms, todos julgaram tratar-se de uma autobiografia.

 
 
 

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