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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Iniciativa gastronômica

Beatriz saiu para comprar duas dúzias de mariscos bem frescos. Também precisaria de uma cebola, um alho, um tomate, pimenta do reino, cinco limões e dois punhados de cheiro verde. Usaria ainda um copo de vinho branco, uma xícara de vinagre e meia xícara de azeite, mas tudo isso já estava em casa a sua disposição.

Deixou tudo na geladeira, rigorosamente organizada e foi à luta. À 12 horas começaria a trabalhar e o novo chefe a esperava para passar-lhe algumas instruções a respeito da nova função que assumiria. Estava ansiosa e um bocado tensa.

De volta para casa, sobre o corpo esguio, Beatriz vestiria o velho avental de sempre, que lhe dava uma beleza diferente. A liturgia seria iniciada no momento exato em que ela cortasse todos os ingredientes selecionados com rigor. Mantendo o espírito de uma celebração, refogaria no azeite o alho, a cebola, o tomate e raspas de limão.

Misturaria bem os ingredientes e deixaria tudo cozinhar por apenas um minutinho, como sugere a receita. Depois adicionaria o vinho e os mariscos para que cozinhassem no vinho por mais outro despretensioso minuto.

Finalizando a liturgia gastronômica, Beatriz passaria tudo para uma vasilha, temperaria com os limões, o cheiro verde, o sal, o vinagre e a pimenta do reino. E tudo estaria pronto para que as pessoas se achegassem a esse verdadeiro altar e compartilhassem daquela iguaria, degustando, sentadas, o que bem merecia todas as reverências que joelhos dobrados sabem desenhar.

Dessa vez Giordano apenas chegou mais cedo do trabalho – havia saído antes, porque planejava preparar uma surpresa para Beatriz – um carinho pela conquista de um novo emprego. No caminho, não comprou nada compulsivamente, por impulso, sem planejamento prévio e geralmente sem necessidade, como era seu hábito difícil de vencer. Não precisou sair para comprar nem mesmo o essencial. Na geladeira havia duas dúzias de mariscos bem frescos. Havia exatamente uma cebola, um alho, um tomate, pimenta do reino, cinco limões e dois punhados de cheiro verde. O vinho branco, o vinagre e o azeite estavam na despensa, esperando por uma convocação.

Agora bastava assumir a cozinha e começar o trabalho. De avental, meias e com a convicção de sempre, pegou na geladeira os ingredientes reservados por Beatriz. Logo de cara, Giordano tratou de colocar uma porção generosa de azeite, alho, cebola, tomate, canela e suco de limão no processador de alimentos e fazer com que cada um perdesse a sua identidade, tornando-se um com os demais. Reservou.

Giordano adicionou vinho aos mariscos. Acrescentou fermento e amido de milho. Misturou tudo, e colocou numa assadeira. Tudo junto e misturado, os ingredientes ficariam ali descansando, certamente fazendo amizade entre si e compartilhando aromas e sabores.

Finalizando a iniciativa gastronômica, Giordano passaria tudo para uma bandeja, temperaria com os limões, o cheiro verde, o sal, o vinagre e a pimenta do reino. E tudo não estaria necessariamente pronto para que a esposa se achegasse ao que, para ele, era um verdadeiro altar e compartilhassem daquela iguaria – assim Giordano pensava –, degustando sentada o que bem merecia todas as reverências que joelhos dobrados sabem desenhar. O marido esbanjava convicção quanto ao seu bom desempenho – talvez até pudesse contar com a sorte de principiante. O forno já estava aquecido a 180 graus e recebeu a encomenda que deveria assar.

Enquanto isso, Giordano saiu para comprar cervejas, sempre respeitando o gosto de Beatriz quanto à marca. Ela deveria estar gelada, muito gelada, e seria servida numa taça única, de cristal antigo, aquela que fez o avô de Beatriz se emocionar ao abrir a caixa de presentes no dia do seu casamento. A conversa com um velho amigo, encontrado por acaso, foi boa.

Beatriz chegou. Enquanto estacionava o carro na garagem de casa, sentiu o cheiro que saía da cozinha. Parecia cheiro de marisco. Parecia cheiro de algo conhecido, mas não identificado claramente. Parecia cheiro de alguma coisa que não estava lhe cheirando muito bem. Não entendeu direito.

Disse “oi, minhas lindas” para as begônias, que naquele dia pareciam mais felizes. Subiu a escada que separa o jardim da varanda, entrou e foi direto para a geladeira e a despensa. Até certo ponto, as duas estavam cheias de um vazio que preenchia a parte desfalcada.

Na cozinha havia um pouco, só um pouco de fumaça. Ela saía do forno, há vários minutos aquecido a 180 graus e assando alguma coisa. A fumaça lhe entregava um perfume que lembrava o aroma de subnitrato de pó de nada preparado ao molho pardo com sardinha.

Giordano chegou e estava particularmente feliz. Estava ansioso. Mas estava absolutamente certo de que agradaria Beatriz de um jeito surpreendente – era sua estreia no ramo da gastronomia, e queria fazer disso um momento de celebração, vivido a sós pelo casal.

Da cozinha lhe chegava um pouco, só um pouco de fumaça. Ela saía do forno, há vários minutos aquecido a 180 graus. A fumaça lhe entregava um perfume que lembrava o aroma de subnitrato de pó de nada preparado ao molho pardo com sardinha.

Em estado de choque, Giordano se lembrou. Lembrou-se de que havia esquecido de alguma coisa ligada ao sair de casa para comprar bebidas. Lembrou-se de que o seu prato, inédito sobre o planeta, deveria ter ficado no forno por apenas dez minutos, não mais do que isso.

– Oi, você já chegou?! Como foi a conversa com o novo chefe? – disse Giordano, administrando a posição das pernas.

– Um saco.

– O que aconteceu, conta pra mim, querida.

– Ele já chegou me dando tarefas de uma área que não tem nada a ver com a minha. Não sou engenheira, arquiteta nada disso – ela estava de punhos cerrados, e isso não era bom.

– Mas ele sabia que você é formada em Geologia.

– Acho que sabia, pelo menos é o que está escrito no meu currículo quando entrei.

– Já aconteceu comigo. Eu sou oceanógrafo, mas eles esperavam que eu soubesse tudo de Economia aplicada à minha área.

– Mas eu quero falar de outra coisa – disse Beatriz.

– Fala, meu amor, pode falar.

– Quero falar desse cheiro abençoado que já tomou conta da rua.

– Tomou conta da rua? Exagerada! Você sempre exagera quando quer me agradar.

– Sim, tomou conta da rua, do quarteirão, talvez de todo o bairro, do universo, sei lá.

– Pois é, Beatriz, eu quis fazer uma surpresa para você. Gostou da iniciativa? E olha, foi minha primeira experiência como chef.

– Pois é, meu amor, sua intenção foi linda. Inesperada.

– Então você curtiu a surpresa.

– Curti. Mas não inteiramente.

– Como assim, “não inteiramente”? O que você quer dizer com “não inteiramente”?

– Eu explico: todos os ingredientes que você usou na sua estreia estavam reservados. Eu ia preparar um jantar à base de marisco para os seus pais. Eles aceitaram o convite para o jantar de amanhã. O prato foi sugestão da minha mãe.

E mais não disse. O castiçal voltou da mesa para o rack.

– Pois é, querida, eu sempre gostei muito dos seus pais, você sabe, não sabe?

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