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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Gatos nunca mais

O medo tem o poder de colocar a humanidade em movimento. Existem pessoas que compram coisas de que não precisam, com o dinheiro que não têm, somente pelo medo de ser visto como alguém desatualizado, que vive em outro mundo, outro século talvez. A roda foi inventada por causa do medo de não ter como transportar pessoas e determinados objetos. Ao ser expulso do paraíso terrestre, Adão sentiu medo de não poder mais contar com a presença de Deus. Até hoje a luta para conquistar a pessoa amada acontece para afugentar o medo da perda e o fantasma da solidão, monstros capazes de amedrontar qualquer um.


Quando aquele gato preto passou bem próximo de Enrico, no momento em que saía de casa para o trabalho, ele quase arrombou a porta da sala e fugiu para onde sabia que nenhum bichano poderia incomodá-lo. “Maledetto gatto!!”, gritou, agora no idioma natal.

Olhou para a foto de um caranguejo em decomposição, cuja nitidez parecia colocá-lo preso à parede, em carne e osso, e viu ali uma imagem suave, feita de traços elegantes, aqueles ferrões amistosos apontados na sua direção. Feio e malvado mesmo era o gato, bicho traiçoeiro, que a avó ensinou a odiar e enxergar como ameaça a existência da pobre raça humana, que para lutar contra esses inimigos dispõe apenas de tanques de guerra e da bomba atômica.


Enrico ajeitou novamente o suspensório e desceu lentamente, degrau por degrau, detalhe por detalhe, silêncio absoluto, até a calçada. Vasculhou as entranhas de cada centímetro do local para certificar-se de que o grande perigo havia se afastado – “Bicho traiçoeiro, do mal!”.


Cuspiu no chão, o que era apenas uma das suas peculiaridades, mas fez isso pensando que somente expressava com eloquência a sua rejeição por aquele animal. Não considerou o gesto inadequado, por tratar-se de uma boa causa – os fins teriam justificado os meios. Para os outros, um comportamento digno de nojo; para ele, uma manifestação silenciosa e justa de protesto. “Abaixo a ditadura dos gatos”. “Gatos nunca mais!” “Por um mundo sem gatos!”. E vai por aí afora.


Depois Enrico foi até a praça, onde entraria num ônibus fretado. No caminho, pensava no que poderia ser feito, que força-tarefa extirparia aquele animal da face da terra, que já perdeu tantos outros, levados à extinção sem desagradar ninguém. Resolvido isso, em seguida Enrico tentaria resolver o problema das guerras.


O italiano vindo há anos de Pádua entendia bem de Estatística, assunto em que havia se formado na universidade e sabia exatamente quantos gatos existem para cada ser humano sobre o planeta. Achava absurda a proporção e abominava a ideia de saber que ele próprio também entrava nesse número, ou seja, tinha lá os seus gatos, sinto muito, sinto muito mesmo por ele, que não pediu nada disso, pobre Enrico.


Quando desceu do ônibus, na avenida movimentada de uma terça pela manhã e nada propícia à circulação de animais indesejados, já estava calmo. Isso, claro, embora ainda tivesse muito a dizer, se no hospital a oitenta metros dali, bem ao lado do prédio onde trabalhava no Departamento de Pesquisas, oferecessem a ele um divã e a oportunidade de falar. Sua rejeição ao animal vinha de bem longe.


O elevador chegou, de volta do vigésimo nono andar. Com seus braços longos, Enrico apertou o botão número 25, pensando no quanto precisava ganhar mais dinheiro. Sentia uma forte necessidade de aumentar seus lucros por meio de um trabalho paralelo que desenvolvia nos finais de semana. A produção de luvas era um empreendimento tocado pela esposa e por um sócio, amizade que começou há anos, numa partida de boliche.


Para eles, só faltava o capital necessário para a compra de matéria prima, divulgação e distribuição do produto, que já ocupava parte de um dos quartos da casa de Enrico, mas eles consideravam isso apenas um detalhe.


Naquele dia, sentiu um impulso quase primitivo de pedir demissão e dedicar-se em tempo integral à produção de luvas. Ela parecia prometer, sem, no entanto, prometer nada a ninguém que buscasse a certeza absoluta em tudo o que faz. O país vivia em crise.


Sem conseguir driblar a insegurança diante da estrada que, naquele momento, lhe oferecia uma bifurcação e pedia decisões urgentes sobre o caminho a seguir, no final do expediente, sem nenhuma consulta prévia, Enrico pediu demissão.


Num primeiro momento, experimentou uma sensação de bem estar, que há muito não sabia o que era, conhecia apenas de ouvir falar e de algumas lembranças escondidas pelo tempo. Nesse cenário de incertezas, tentou com todas as suas forças viver intensamente o papel de camaleão. Era preciso se adaptar ao ambiente que acabara de criar, todo feito de mudanças radicais.


A viagem de volta para casa demorou um pouco mais, o trânsito naquele dia, estava um inferno e meio. Então houve mais tempo para refletir.


A demissão estava mesmo encaminhada, caminho sem volta. A empresa havia ficado para trás, o chefe já não estava ao seu alcance. Pior, Enrico não tinha qualquer segurança quanto à reação da esposa.


Naquela noite, ela o recebeu com um jantar um pouco mais elaborado, o aparador decorado com uma rosa champanhe e o isqueiro definitivamente no lixo. O momento era especial, Malu revelaria, enfim, o que não havia sido esperado por eles. Quando Enrico chegou, ela se levantou prontamente da cadeira de balanço, herança da avó materna, e pediu a Andrea Bocelli que começasse a cantar.


Depois de beijá-la, Enrico livrou-se imediatamente da botina, foi para o banho e vestiu o pijama.


A garrafa de vinho foi aberta. Brindaram.

– A que brindamos, Malu?

– Ao nosso bebê que vai chegar – gostou da notícia? – Malu era um sorriso ambulante.


A ferradura presa atrás da porta quase se jogou no chão. Enrico arregalou os olhos, pigarreou e ajeitou-se na cadeira, coçando o rosto e tirando os óculos. Também precisava fazer a sua revelação. Mas antes era preciso expressar sua alegria pelo momento em que a notícia chegava.

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