Oscar estava no clube, quando se enganou a respeito de alguém que pensava ser conhecido. Afetado e com uma autoconfiança levemente acima do recomendado, olhou aquela pessoa e logo tirou algumas conclusões. Só porque deu de cara com um cabelo comprido, da cor da meia-noite, alpargatas surradas e físico bem constituído. Essas imagens ainda estavam presentes em sua retina, desde o reencontro com uma velha amiga.
Abordada pelo toque daquele homem com certa familiaridade inesperada, Ana Paula reagiu com hostilidade ao se sentir invadida por um estranho. Traumatizada e com medo de assalto, colocou a cabeça no modo “Automático” e pediu ajuda a um segurança do local.
Oscar endireitou o corpo levemente curvado e pediu desculpas pelo engano. Pedido recusado. Assumiu a culpa e pediu perdão. A voz rouca sugeria um sentimento de embaraço. Pedido recusado.
Ele ainda não sabia que, quando aquela jovem mulher colocava o dedo indicador na ponta do nariz estreito, isso era mau sinal. Levada pelo impulso, nessa tarefa, a Tradutora encontrou certa dificuldade no trato com as palavras e gestos, quando precisou interpretar a fala de um personagem real, que não espera pelo trabalho de edição.
No mesmo dia, no final da tarde, encontraram-se na porta da escola, onde foram apanhar os filhos. Na calçada, uma árvore, visitada por um pássaro cantor, emprestava sua pouca sombra. O ar estava seco. A grama seca farfalhava sob seus pés.
A filha de Ana Paula queixava-se de dor no olho – consequência da poluição? Com mãos de harpista, acariciou a menina. Agindo com leveza, seus lábios estreitos garantiram alguns beijos naquele olho mal comportado.
Cada uma a seu modo, todas as crianças vestiam alguma coisa típica de festa junina. Movida pelo clima, uma delas perguntou a Oscar se a barba esbranquiçada era de verdade. Pudera, sua pele da cor de giz contribuía para montar o figurino que suscitava questões dessa natureza. E isso aumentava ainda mais o seu medo crônico de parecer velho. Velho, atrevido e inadequado.
Oscar demonstrou atenção à filha de Ana Paula. Perguntou à mãe se esse incômodo acontecia com frequência. Ofereceu-se par ajudar, era Oftalmologista, estava escrito no seu cartão de visita.
Ana Paula mirou-o por um instante, com olhos aguçados e receosos – chamaria o guarda novamente? Começou a quebrar o gelo. Mas a grande geleira cedia aos poucos, muito aos poucos. Assim mesmo, aceitou ouvir algumas orientações. Sentia medo de uma aproximação maior com um desconhecido. Bem rápido procurou desfazer qualquer possibilidade de seguir em frente com aquela conversa.
Sentindo-se desconfortável com tudo aquilo, Oscar deixou o local e foi para casa. Depois desceria as escadas do sobrado antigo e entraria no consultório, onde atenderia mais três clientes.
A filha de Ana Paula se queixou durante todo o tempo. A dor da menina parecia aumentar. Ana Paula ligou para o consultório de Oscar. Logo foi informada de que não havia qualquer possibilidade de um encaixe para aquele início de noite. Deixou recado para Oscar, pedindo-lhe ao menos um retorno.
Falante e movido pela empatia, Oscar ligou para Ana Paula e inventou uma solução. Disse que precisava permanecer no consultório por outro motivo e que ela trouxesse a menina para vê-lo.
Ana Paula pediu desculpas pelo transtorno acontecido no clube de manhã. Esclareceu que havia sido abordada por um estranho, fazia pouco tempo, no mesmo local. Fez questão de destacar, usando palavras trêmulas, que naquela situação foi vítima de assédio e coação. Confirmou a visita.
Com olhos protegidos pelos óculos sem aros, e usando as mãos delicadas que convêm à profissão, Oscar examinou a menina. O problema era muito simples, foi o que se pôde ver. Bastavam apenas algumas gotas de colírio, não tanto por ele mesmo, senão pelo efeito psicológico que causaria na paciente.
Para os olhos irritados, colírio. Porém, mais do que isso, era preciso entender que a garotinha queria apenas chamar a atenção, pedir um pouco de afeto, do qual se sentia carente. Se os olhos são as janelas da alma... Terrível para Ana Paula. A jovem mãe não suportava ouvir qualquer crítica. Mais ainda em se tratando de omissão nos cuidados com sua única menina.
Ela falaria com o marido a respeito da situação. Talvez consultassem um amigo psicólogo para ouvir alguma coisa sobre os últimos acontecimentos. Queriam saber onde foi que erraram.
Não sei se o orgulho crônico do casal receberia bem uma resposta que não privilegiasse elogios ao comportamento dos dois. Algumas dores são um grito silencioso pedindo para que a alma seja tratada com mais cuidado. ≡
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