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■ Eu sou médico

  • Foto do escritor: Rubens Marchioni
    Rubens Marchioni
  • 9 de mar. de 2022
  • 3 min de leitura

Dr. Eugênio tomava um refrigerante na lanchonete em frente ao seu local de trabalho. Era uma quarta-feira quente de dezembro. Início da noite e final do seu período de plantão. Com ele estava Álvaro, um amigo de muito, muito tempo atrás.

- Doutor, você se lembra do primeiro dia aqui no hospital? – Álvaro perguntou.

- Sim, é claro, foi um dia muito corrido. Eu era um jovem médico... – Dr. Eugênio refletiu.


Enquanto falava, ele ajeitou as próprias roupas.


Álvaro, um homem de meia-idade, falava pausadamente.

- Isso faz muito tempo, claro. – E você nunca perdeu o gás, não é mesmo?


Com os olhos sempre voltados para o alto, como que se conectado com outro mundo, Dr. Eugênio sustentava aquela conversa com palavras calculadas. Assim era o velho médico, dentro e fora do consultório.


- Acho que perdi um pouco do gás. Ando meio cansado – disse ele. – Mas não perdi a teimosia.

- Sei, a boa e velha teimosia de sempre... – respondeu Álvaro. – Teimosia do bem!


- Uma lembrança daquele tempo: qual seria? – perguntou o amigo, como se iniciasse um ping-pong.

- O que aconteceu naquele dia não foi negligência minha. Foi uma fatalidade. - Aquela jovem, o nome dela era Joana, uma uruguaia – Dr. Eugênio lembrou.

- Do que você está falando? – disse Álvaro, com interesse.


Dr. Eugênio ajeitou novamente as próprias roupas.


- O caso da Joana... Nem a ciência sabia o que dizer. Como é que eu ia saber?! – respondeu.

- Sei. Esquece isso, meu amigo. Já passou – disse Álvaro. – Você é humano, lembra?


Com a mesma determinação com que trabalhava para apagar uma incômoda imagem que lhe pesava, há mais de 40 anos, e dando passos arrastados, Dr. Eugênio tomou o rumo do estacionamento. Seu destino era um pouco de repouso depois de um dia confuso tentando salvar a vida de pacientes com Covid-19.


Dr. Eugênio ajeitou novamente as próprias roupas.


A rua paralela ao hospital era um cenário mal iluminado e vazio. Ali estava uma jovem grávida, sentada na guia. Havia também uma árvore na calçada, mas ela nada fazia além de escancarar seu esqueleto ressecado.


Dr. Eugênio freou o carro. Desceu tão rápido quanto pôde e ajeitou novamente as próprias roupas. A jovem transpirava muito e seu rosto estava pálido, apagado como o próprio dia em compasso de despedida.


O médico tentou falar com ela. A jovem não respondeu. Ele tentou novamente. Sem ouvir uma resposta, procurou acomodá-la no próprio carro. Voltaria correndo para o hospital.


Mas a rua que lhe permitiria cortar caminho e ganhar tempo em favor da vida era contra mão, e desrespeitar a regra seria motivo suficiente para uma punição ao motorista. No entanto, o estado daquela jovem quase desfalecida não encontrava espaço para flexibilizar a dureza da lei.


Dr. Eugênio ajeitou novamente as próprias roupas. Tentou explicar isso ao guarda de trânsito, feito de olhos duros e repertório escasso.

- Seu guarda, eu sou médico, estou socorrendo uma mulher... – disse.

- Eu sinto muito. Não pode passar por aqui. É contra mão – respondeu, inflexível. Vou ter de multar o senhor. Os documentos do veículo! – disse, com uma caneta apontada para o médico.


O segurança de trânsito precisava mostrar a si mesmo que não levaria outra advertência, como aquela em que, para facilitar o trabalho de um médico agiu de uma forma que seu comandante enxergou como desobediência. Assim, impondo-se uma atitude que lhe dava a sensação de responder à sua necessidade crônica de autodisciplina, lutava para mostrar que não repetiria o gesto.


Agora, para ele, ao menos por medida de precaução, a lei valia mais do que qualquer coisa. Cumpra-se. Mas Dr. Eugênio insistiu.

- Eu sou médico, tenho compromisso com a vida, procure entender, poxa!

- Encoste aí, por favor. Encoste aí. – respondeu o policial.

- Tudo bem, eu encosto. Mas encoste aqui um pouco você também. Vou lhe dizer umas coisinhas.


Disse. Disse tudo. Disse ainda mais um pouco. E se calou, tão estacionado quanto seu veículo.


Usando um celular de última geração, o policial fez duas chamadas. Não demorou muito até que uma viatura, sirene ligada, chegasse. A jovem grávida teve de retomar seu espaço na calçada. Detido para averiguação, Dr. Eugênio foi gentilmente convidado a entrar no veículo, que saiu depressa.


O Resgate chegou.

 
 
 

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