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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Era preciso esquecer

Flávio ainda não tinha tomado o café da manhã. Vestido dos cabelos até o par de botinas, apenas esperava a companhia da sua esposa, andando de um lado para outro e, enquanto isso, tomando pequenas providências práticas que dariam mais agilidade ao trabalho de geógrafo, agora feito em grande parte diretamente do seu escritório doméstico.

Natália estava dormindo, ou estava levemente acordada, apenas esperando preguiçosamente pela música que toda manhã a acordava – um mimo do marido, que a recebia com carinho e afagos.

As malas já estavam prontas, separadas, na área de serviço do apartamento. Natália era organizada e previdente. Cuidava de detalhes. Buscava o máximo de segurança em tudo o que fazia. Ela gostava de criar um ambiente de conforto para os dois.

Toda a bagagem fora preparada no dia anterior, trabalho realizado com a ajuda de um rigoroso checklist de viagem, elaborado ao longo dos anos, e que cumpria muito bem a tarefa de não permitir esquecimentos que depois poderiam custar caro. Graças a esse recurso de organização pessoal, do qual Natália se orgulhava, nada ficou de fora nas viagens que fez, incluindo duas para a Europa e muitas para a casa de amigos e parentes ali mesmo ou no interior. O checklist incluía, também, o cuidado de evitar que algumas coisas novas de Flávio fossem incluídas na mala, para uso nos próximos dias, quando ele sabidamente preferia mantê-las guardadas, sem nunca usá-las – esse era o seu TOC, contra o qual lutava há anos.

O sol, lá fora, exibia uma generosidade acolhedora. Não queimava, mas impedia a sensação de frio naquele outono indeciso e com desejo de se tornar inverno.

A praia estaria deliciosa naquela manhã, anfitriã que os esperava há alguns meses com a areia limpa na medida certa para receber visitas especiais. Na ocasião, Natália inauguraria a nova saída de praia e um par de tênis, talvez no jantar num restaurante de sempre.

O trânsito, naquela estrada, não era muito amigável. Talvez desejasse sê-lo – pelo menos é o que se podia pensar diante do seu comportamento de apego, fazendo todo o esforço para que os motoristas não o deixassem tão cedo.

A estrada amava a todos democraticamente, sempre criando todos os meios para que uma viagem com duração estimada de 50 minutos se transformasse numa permanência exaustiva de pelo menos uma hora e meia. Mas, ao mesmo tempo, ela não era nada democrática, porque não havia consulta prévia de quem fosse passar por ali. Flávio e Natália sentiriam na pele o que era isso.

Começou. A viatura do Corpo de Bombeiros gritou lá atrás. Queria passagem, a qualquer custo. O caso parecia grave. Mas o trânsito não andava. Nada andava. Flávio baixou o volume do rádio, que tocava Jesus Alegria dos Homens, de Bach, uma das preferidas do casal.

Ele se esforçou para abrir caminho e deixar que a viatura passasse tão rápida quanto parecia ser necessário. Em cada cabeça uma certeza - “deu merda, isso vai render.”.

O trânsito estava parado. Nada andava. Apenas o pensamento de Flávio, avesso à ideia de se expor em público, sobretudo numa praia.

Talvez o acidente o ajudasse a ter um álibi para abortar a viagem. Na estrada ele não teria de mostrar a pele quase transparente, no corpo rijo e com marcas que fazia questão de esconder.

– Eu detesto esperar – disse Flávio, impaciente. – Acho que é melhor voltar, sabe? Você conhece o meu medo de assalto, lembra?

– Eu também não gosto de esperar. Mas dessa vez é por uma boa causa – respondeu Natália, com bom humor.

– Uma boa causa?! – disse, arregalando os olhos cor de conhaque.

– Sim, uma ótima causa – disse Natália, ajeitando o cabelo comprido, preso por uma fita que falava da sua vaidade.

– Ficar naquela areia, quase sem roupa, correndo o risco de..., sei lá – isso é uma boa causa? Tem certeza?! Nessas horas ele enviava sinais visíveis de que desejava contar com a empatia de Natália.

O carro da frente andou um pouco. Percorreu lentamente alguns metros. Parou. O de trás buzinou, pensando em liberdade. O de trás dele também buzinou, com a mesma sede. Por pouco não começa aí um buzinaço improvisado, desses que as metrópoles conhecem muito bem e não é só de ouvir falar.

O pensamento de Natália também viajava, e nisso fazia carreira solo, sem levar consigo Flávio e seu medo de exposição e assalto.

Nas suas imagens havia praia, areia quente, caipirinha de vodka, aperitivo, cerveja, preguiça, muito sol, gente bonita circulando, corpos bem feitos, a vida sendo generosa. Uma revista para ler, ou para levá-la mais cedo até o cochilo mais próximo e bendito.

O acidente não poderia lhe roubar essa experiência que confirmaria a existência de Deus e seu amor por nós – afinal, “quem, senão um ser divino, criaria tudo isso e entregaria ao homem sem cobrança de ingresso?” – refletia ela. Natália ficou em silêncio, olhando para longe.

– No que você está pensando? – disse Flávio.

– Estou pensando em Deus. Ele existe – disse Natália.

– Ah, Deus existe? Poxa! E como é que você chegou a essa conclusão, grande Natália? – perguntou Flávio, um cristão convicto que ainda se surpreendia com as brincadeiras de sua companheira.

– Simples. Se existe praia, sol e mar, então existe Deus – respondeu ela, com uma quase gargalhada.

Há duzentos metros dali havia uma cabana construída num estilo importado dos Estados Unidos. Lá dentro se vendia cerveja bem gelada, água, salgados que deslocavam admiradores de diferentes pontos da cidade para viver novamente sua leveza crocante e, de graça, cortesia da casa, o atendimento cordial e familiar, cada cliente tratado pelo próprio nome, como se dividissem o mesmo sangue.

Alguns meses atrás, Flávio e Natália haviam passado por lá, apenas para ver como eram as coisas, e tudo ali os fez prometer a si mesmos que voltariam outras e outras vezes. Mas agora isso parecia inatingível. O trânsito estava parado. Nada andava. Não havia como se livrar do carro e ir a pé. E nada andava. Nem eles, que sequer podiam alimentar a esperança de retornar. Fosse assim, este incidente jogaria a favor de Flávio, protegido dentro de carro, dentro da calça jeans e da camisa esporte, de manga comprida, sobre uma camiseta branca.

Agora uma ambulância, logo atrás, parecia se esforçar para revogar algumas leis da Física e seguir em frente apesar de tudo. Se dependesse da sua pressa, dois corpos passariam a ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo lugar.

Mais uma vez, os carros se espremeram. Espremeram-se cerca de louváveis trinta centímetros, porque esse era todo o espaço de que dispunham para facilitar a passagem da viatura branca e testa vermelha.

O trânsito andou. Andou um pouco mais. Devagar. Andou de novo. Parou. Andou de novo. A ansiedade do casal aumentou. O carro de trás mostrou o poder da sua buzina. Assim como o de trás do de trás. Os motores roncaram para fazer barulho e seguiram em frente. Deus existe, Natália o encontraria na praia.

Chegaram e foram direto para o prédio onde tinham um apartamento bem simpático e com decoração calculada para acolher sem ostentação. Filhos únicos, vez por outra recebiam os pais e algum amigo da família.

– Onde está o controle remoto pra abrir o portão? – disse Flávio.

– Não sei. Na última vez que você veio eu não vim, lembra? Ele fica no lugar de sempre.

– E a chave do apartamento? – disse Flávio.

– Está no mesmo chaveiro... com o controle. Você não pegou o chaveiro da praia? – disse Natália, que em algum momento chegou a pensar em autossabotagem, tema sobre o qual acabara de ler um livro.

Sem chance. Na volta para casa, o trânsito andava bem. A cabana, inacessível, ficava do outro lado da pista. E o chaveiro, ocioso, estava muito bem guardado, na terceira gaveta da cômoda, do lado esquerdo, sem se misturar com o checklist de viagem. Falha nossa.

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