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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Era domingo. O corpo e a alma lutavam por alimento


O dia é do Senhor. Mas ele é mestre na arte de dividir. Divide-o com Heitor na hora da liturgia. Na acolhida que recebe. Na sua possibilidade de falar com ele.


– Senhor, eu não sei o que estão dizendo, cantando, mas fique com o que existir de melhor nessas palavras, na música dos instrumentos, em tudo, esse é o meu louvor, essa é a minha oração, eis o que posso dizer. Mais do que as palavras do meu idioma, o senhor conhece bem o lugar de onde nasce cada uma delas. Amém. – ele disse.


Heitor voltou para casa, passagem breve. De lá, tocou direto para o Capital. A loja é especializada em produtos poloneses. Uma vantagem de se viver por ali. Ele sabe bem o que quer. Vai direto ao ponto, já aprendeu o caminho. Anda como a energia por fios elétricos, quase sem ser notado.


Com um copo de iogurte de ameixa e musli nas mãos, passa pelo caixa. Na hora de pagar, uma experiência feliz. O jovem repete o gesto, que viu dias atrás. Aprovação inesperada. Se Mies Van Der Rohe está correto ao afirmar que “Deus está nos detalhes.”, aquele balconista, profissional atento, sabe enxergar a presença de Deus como lhe parece. Heitor gostou disso.


O rapaz sugeria ter gostado da ideia de acomodar moedas na parte de plástico que vem no interior de todo Kinder Egg. Agora um ovo recheado de dinheiro, embora pequeno. Havia encontrado o que lhe parecia ideal para guardar moedas de todos os valores. Para pequenas economias, pequenos cofres.


Heitor só precisou da pergunta “Por que não?”. É fácil. Basta se permitir. A solução, custo zero, veio na hora. Estava guardada fora do convencional. Fora também se guarda.


Andou alguns metros e sentou-se no banco solitário da calçada. A primeira parte da sua refeição dominical aconteceu ali mesmo. Tudo sob o olhar atento da igreja de São Mathews, onde na última Sexta-feira Santa alguém o informou com solenidade que naquele momento “No service. Sorry”. Ele só queria se servir daquele banquete arquitetônico, mas regras são regras. Obsequioso, obedeceu.


Pouco a pouco o copo encheu-se de vazio. Perdeu o sentido. Um pedaço de plástico inútil. Olhou para os lados e pensou: “Que pobreza!” Tomou a colher de bronze que carregava no bolso da jaqueta. Com ela aproveitou as últimas gotas daquele alimento delicioso e saudável. As pessoas olhavam. “Que olhem!” – pensou. Pouco a pouco adestrava seus hábitos para que se harmonizassem com a cultura desse país.


A colher voltou para o bolso. Já fez o seu trabalho. Alimentou, apagou a fome que ameaçava a pouca estrutura de Heitor. Foi para o compartimento em que esperaria ser devidamente lavada. Lavou, está limpa. Até o próximo dia. No final do confinamento.


Seguiu seu caminho, arquitetando novas experiências. O trajeto era rotineiro, não produzia nem revelava nada que Heitor não conhecesse. Caminhou até um estabelecimento relativamente próximo à sua casa. O lugar prometia. Precisava ser conhecido. A experiência poderia levá-lo à adoção. Um ponto de venda completo em tudo, seu layout agradava. Inclusive no contingente de consumidores. Todos traziam um “Sorry” na ponta da língua. Uma gentileza convencional e contida, que tem o seu valor. Britanicamente pontual. Ele poderia ser usado até mesmo quando desnecessário.


Tratava-se de um grande supermercado e um belo centro do capitalismo de Primeiro Mundo. Na hora de pagar, nenhuma intervenção humana. A máquina já sabia o que e como fazer. Um quadro com as cores da tecnologia mais avançada, a mesma que empurra algumas pessoas para a periferia da vida. Heitor conhecia apenas de passagem, pelas janelas do ônibus.


Naquele dia, foi vê-lo pessoalmente. Usou óculos literários. Queria entendê-lo a fundo, deixar que falasse. Talvez assim penetrasse as suas entranhas. Comprou um pedaço de queijo Brie, um suco e um chocolate. Dieta básica. Prato feliz. Modestamente feliz. Não sei o que ouviria de um nutricionista a respeito do seu almoço. Quanto ao seu paladar, ele ficou feliz, segundo confidenciou a Heitor.


Andando entre casas fechadas e carros com pedigree, deliciou-se com a segunda parte da sua refeição. Os olhos permaneciam atentos para não perder certos detalhes imperdíveis.


Heitor caminhou. Alcançou o mesmo shopping do dia anterior. Na bolsa levava uma pasta repleta de recursos de escrita, que não foram usados. A cabeça produziu sem parar. Para escrever muito é preciso sofrer muito, sentenciou o impagável Rubem Alves, que antes do combinado foi viver as maravilhas do paraíso. Heitor tinha muito o que dizer. Muito. Escrevia para organizar o interior, como uma doméstica envolvida com a tarefa de colocar ordem na casa, depois de uma festa da qual sequer participou.


Não era apenas domingo. Era uma espécie de domingo universal, sem trabalho externo, sob o sol do meio-dia. Como já havia almoçado, só faltava o de sempre: um cappuccino, do Costa Café.


Novamente a bebida estava cremosa e suculenta. Trazia uma camada de chocolate em pó em sua superfície. Um coração desenhado sobre a camada branca de espuma – mais do que uma bebida, naquela xícara continha uma declaração de amor, um amor flexível o bastante para habitar festivamente o corpo de Heitor. Por algum tempo, sentiu o gostinho da felicidade. Certamente ela é feita de café, chocolate e sabe-se Deus o que – segredo guardado a 14 chaves. SDS – Só Deus sabe.


Valéria o chamou ao celular. Por um instante, seu pressentimento saiu do assento, as orelhas ficaram em pé. Os planos do grupo, então no centro da cidade, foram alterados. Haveria almoço em casa. Tarde demais, Heitor já havia ido além da sobremesa. Outro dia, talvez. A ligação alterou também a qualidade do seu domingo – que tarefa impopular! “A empresa mandou mensagem, amanhã vocês entram às oito.” – disse Valéria. A orquestra interior suspendeu a música, já desafinada e confusa.


– Amanhã?! Amanhã é meu dia off. – Heitor reagiu.

– Não, o seu dia foi sábado e está sendo hoje. Amanhã tem trabalho. – Valéria esclareceu.


Heitor respirou fundo. Novamente a empresa fazia nascer uma nova edição da mesma tristeza de todo dia. Ela envenenava o café e a vida. No sábado, foi dispensado, sem qualquer proposta de trocar aquele dia pela segunda-feira. “Não existe nada de off nessa história.” – ele concluiu.


Heitor voltou para casa. Com ele, levou um domingo danificado. Tchaikovsky mostrou-lhe o que fez de melhor. Bethânia também cantou. Sua voz forte rasgou o espaço e ecoou pelos cantos. Visitou os escombros. Seguiu em frente, ninguém aprisiona uma canção. As duas imagens se fundiram, o clássico e o popular, na cena daquele domingo quase desfeito.


O sol estava meio amarelo. A tarde queria chegar. A cabeça reivindicava algum descanso possível. No último dia Deus descansou. Era justo.


Heitor conseguiu falar com a irmã. Uma conversa gostosa por meio da qual costurou retalhos de emoções que se uniam pelas ondas de um vasto oceano. Nem tudo estava perdido. A palavra que vinha de longe reconstruiu, porque semeou jardins onde pedras insistiam em roubar a cena. Sobem créditos. A música de fundo entra em BG.


Valéria decidiu: – “Amanhã, fique em casa, durma até mais tarde, descanse”.


Naquela noite Heitor dormiu em paz.

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