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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Era apenas Alguém

Era Alguém – Alguém de Tal, para dar nome e sobrenome. Entre o nariz e o lábio exibia uma verruga, que acariciava com frequência e método usando o dedo indicador direito.


Naquele dia usava macacão de jeans claro, tênis e óculos de sol. Tinha nas mãos um livro sobre comportamento humano, lido sem pressa, além do jornal, que devorava com fome de informações e reflexões sobre fatos atuais. O cabelo levemente grisalho fazia pensar naquela idade em que se vive os prazeres e as dores de ter atingido a metade de uma longa carreira profissional, agora mergulhada em tempos de mudanças profundas nesse planeta que outra vez tem ares de adolescente.


Alguém estava no parque, a caminho do Centro Cultural. Andava entre árvores e ideias que pousavam e voavam descompromissadas. Depois disso, procuraria por uma área com sombra, feita de banco e mesa limpa para ler o jornal diário, prioridade máxima. A densidade demográfica do parque infantil não passava de doze pessoas, entre crianças e adultos. Não se pode falar em férias escolares em pleno mês de maio.


Alguém de Tal fez tudo o que fez, mas não podia deixar de se lembrar da realidade esquecida, em regime de liberdade vigiada, entre as quatro paredes do seu quarto mergulhado em flagrante desordem. Mas Alguém insistia em acreditar que se tratava apenas de um detalhe, desses que se pode manter abafado e sob sigilo. No entanto, não havia sigilo, apenas evidências e elas pediam urgência nas investigações que deveria fazer sobre suas causas camufladas e as consequências que bem cedo se tornariam visíveis.


Ao menos por uma questão de princípios, Alguém de Tal lutaria com um esforço que, no entanto, se tornara pálido, para solucionar aquela crise. Seu próximo desafio consistia em vencer a estrada feita de altos e baixos; mais baixos do que altos. Com medo de ficar mais pobre, inclusive de espírito, desejava passar a imagem de um ser quase heroico, que vence todas as batalhas e reconquista seu espaço também no mundo profissional.


Sua qualidade de vida havia sido confortável, quando tinha um belo portfólio de clientes, e bastava apenas ser o que de melhor se podia esperar em termos de competência e seriedade, não importava a data de nascimento. Bons tempos aqueles em que o mundo ainda não havia se tornado líquido, conforme o que foi denunciado pelo sociólogo Zygmunt Bauman.


Agora Alguém de Tal conhecia na intimidade o lado “B” de uma história que se escrevia com traços pesados e um final que um bom roteirista demoraria um pouco mais para imaginar.


Durante todo o tempo, conseguiu obter níveis máximos de originalidade no encontro de soluções para problemas de seus clientes. Mas agora atendia o cliente interno mais interno que existe, chamado “Eu”. E para essa pessoa com necessidades tão conhecidas, Alguém não passava nem perto do “Eureka!”, aquele de Arquimedes. Talvez isso acontecesse devido à impossibilidade do necessário distanciamento do tema em questão. Atender-se dá mais trabalho, porque o profeta nunca é aceito e acreditado na própria casa, a começar por si mesmo, e essa metáfora nem foi inventada por mim.


Alguém de Tal entrou na cafeteria escondida entre eucaliptos e cercada por um tapete confeccionado por folhas secas. Gritando, ao mesmo tempo, o ruído do liquidificador e do espremedor de frutas representava um barulho infernal para quem buscava encontrar um silêncio silencioso. Ao mesmo tempo, o som ambiente lhe trouxe uma música da última década. Embora ela agradasse o seu estilo musical, evitou cantarolar, como de costume. A decisão se deveu à certeza, recém-chegada, de que dizer determinada palavra ou cantar certa música poderia lhe trazer azar ou até mesmo provocar desastres. Só me faltava essa.


Alguém de Tal se sentou no fundo e pediu um café com licor de damasco. A bebida tinha o poder de evocar lembranças de um tempo em que uma presença carinhosa e inteligente enriquecia as conversas, por vezes levemente picantes, que trafegavam entre temas como literatura, cinema e política internacional.


Depois pensou em voltar pra casa. Ficou mais um pouco. Olhou para lugar nenhum para não pensar em nada. O antigo café quente se tornou intragável, depois de ser vencido pelo tempo, mas Alguém não pediu outro. Pensou que o caso era para uma dose de qualquer bebida mais forte, mas o bom senso ligou a luz vermelha. No mesmo instante, um alarme alertou para o que estaria a caminho, caso trocasse a bebida e se envolvesse com a ilusão, sempre passageira, de ter encontrado uma resposta que, no entanto, se diluiria com a volta da sobriedade.


Pagou a conta e repensou os seus valores. Uma crise profissional não poderia justificar atitudes que depois teriam um custo pessoal capaz de furar até o mais resistente teto de gastos financeiros, emocionais e da própria imagem. Isso, sem contar o preço de ter cometido desobediência à cláusula pétrea, segundo a qual a irresponsabilidade fiscal com suas finanças pode trazer consequências nada recomendáveis a quem deseja se retomar.


Pensou mais uma vez no que era essencial para a sua vida. Mas teve dúvidas sobre a disposição para agir, na prática, em busca da paz desejada. Novamente insistiu em estabelecer critérios mais rígidos para viabilizá-lo – “Eclipses são fenômenos passageiros” – refletiu.


Alguém de Tal voltou para casa. Desejou manter o profissionalismo no trato consigo e com o seu futuro. Solidarizou-se com a imagem revelada pelo espelho do banheiro, e se lembrou de que a possibilidade de uma vida mais equilibrada merecia todo esforço.


Procurou arrumar o quarto – quanta bagunça, meu Deus! Qual seria o nome do furacão?


Andou pelos escombros e avaliou os prejuízos – a fronha queimada por um cigarro esquecido e a tomada do abajur descolada da parede. A prateleira acumulava inúmeras funções, tão grande era o número e a variedade de coisas empilhadas. Ao menos na madrugada, Alguém era poupado de ver a pilha de roupa suja esquecida sobre a cômoda ou a sujeira sobre o tapete velho e cansado de passos incertos.


Depois ensaiou um jeito de arrumar também o quarto interior – quanta bagunça, meu Deus! Obteve algum sucesso na empreitada – até sabia por onde começar. Apenas faltava estabelecer uma meta e caminhar até ela.


Releu o mantra “Foco & Disciplina”, uma espécie de palavra de ordem, escrita em corpo 72, negrito, num quadro em branco e preto que insistia em não se soltar da parede sob qualquer pretexto.


Aceitou o convite da cama, agora mais ou menos bem arrumada, e dormiu.

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