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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Emergências com sirene ligada

Diogo trabalhava em um hospital veterinário. O médico estava preso por uma avenida congestionada, sem direito a fiança, a caminho dos animais sob seus cuidados. Naquele dia ele dava carona para João Paulo, seu amigo.

– Sabe, trabalhando na penitenciária, como chefe dos carcereiros, eu também me sinto enjaulado.

Diogo fez com a cabeça que sim, ele entendia.

Cada um no seu quadrado, portanto: no hospital, animais bem cuidados; na penitenciária, presos cuja data de validade do encarceramento já havia expirado, aguardando um julgamento sem qualquer previsão de acontecer.

– Pois é, meu amigo, acho que a experiência de quem vive preso no trânsito tem um pouco disso também. A gente tem compromisso com horário, mas... – disse Diogo. – Mesmo sendo inocente, o motorista é punido todos os dias, engraçado isso!

– Olha, Diogo, me disseram que não vou conseguir, mas eu tenho um projeto.

– No que você está pensando, João?

– Estou pensando em mudar de profissão e de cidade, sabe? E eu vou até o fim, não vou desistir, você me conhece.

– Conheço. Conheço sim. Eu não mudaria de profissão. Aliás, só aprendi a ser médico veterinário.

Diogo alimentava um projeto, talvez paralelo: gostaria de fazer alguma coisa onde pudesse empregar as técnicas de criatividade, encontrar caminhos diferentes para problemas convencionais. Mas era preciso manter o foco no compromisso imediato de ganhar mais para garantir o futuro, seu e da família.

– E o seu medo crônico de dirigir? Já se livrou dele? – disse João Paulo.

– Sinceramente? Não. Quer dizer, não totalmente. Ainda fico meio tenso.

Suas mãos robustas, sugerindo que elas estariam a serviço de um homem cheio de corajem, dentro de um carro ou de uma nave espacial, não sugeria nada disso.

– Um habbeas corpus pode resolver isso – disse João Paulo, sorrindo.

O celular de Diogo estava com pressa quando tocou, insistente.

– Oi, querido, onde você está? – disse Alexia, tomada pelo estresse.

– Estou aqui, ora! Onde você queria que eu estivesse? – Diogo respondeu.

– Que estivesse aqui, é claro! Você não disse que viria hoje?

– Não. Eu disse que vou amanhã depois do almoço. Você se confundiu.

– Você não perde a mania de me fazer de boba! – disse Alexia, furiosa.

– E você não perde a mania de... – bem, deixa pra lá, deixa pra lá.

– Pois é, meu amigo, eu não queria, mas vou ter de viajar hoje – disse Diogo. – Minha mulher está na chácara de um amigo, sozinha. 

– E se você não for, o que acontece? Ela manda te prender? – disse João Paulo, sorrindo e tentando aliviar a tensão.

– Não quero nem pensar. Ela vira bicho! Tudo bem, veterinário tem experiência...

Diogo fez planos para viajar naquele dia após o almoço. Mas os planos não estavam alinhados com a vida, e ele nem havia combinado com o inimigo da sua agenda. O hospital o convocou, às pressas, para atender alguns animais, certamente contaminados por alimentos deteriorados.

– Diogo, você não disse que viria hoje depois do almoço? Já passa das oito da noite e nada. Onde você está?

– Estou no hospital, atendendo uma emergência; seis animais contaminados, em estado grave. Vou tentar ir ainda hoje, não sei que horas, calma, vou tentar, calma...

– Tudo bem, vou tentar ficar calma – disse Alexia, enquanto os olhos verdes se tornavam mais aguçados.

Quando Diogo chegou, no dia seguinte, sua mulher já estava dormindo. Ele entrou, devagarzinho como um gato, deixou tudo num canto, tomou um banho rápido e foi se deitar.

Após o café da manhã, foram pescar. O equipamento de pesca, agora com novos anzóis, há tempo estava pronto para o trabalho. No rio a cem metros dali, pegariam tilápias, que seriam preparadas, segundo uma receita da avó de Diogo, acompanhadas pelas bênçãos da cerveja muito gelada ou de uma taça de vinho.

Diogo e Alexia aproveitaram ao máximo, trocando pequenas alfinetadas com certa pitada de humor e ironia. Tudo era brincadeira. Tudo era sério. Tudo era tudo.

– Senhor Veterinário, o senhor sabe que antes do senhor chegar eu quase morri do coração? – disse Alexia.

– Porque, senhora Massagista, o que aconteceu?

– Nada não. Apenas um rato do tamanho de um hipopótamo se enfiou embaixo da cama do outro quarto, só isso.

– Sim, mas como ele conseguiu entrar? Não é tudo fechado?! Ou ele estava impresso em papel sulfite e o vento o empurrou para debaixo da cama?

– Isso não é engraçado. Não sei por onde, mas ele entrou e foi lá pra baixo. Tive de procurar um chinelo, correndo, eu não me acostumo com chinelos, essas coisas. Peguei uma vassoura e nada. Joguei veneno, não sei se ele morreu.

– Ele tinha mesmo o tamanho de um hipopótamo? Foi por isso que mesmo estando em forma você não se atreveu a lutar com ele?

– Tinha, tinha o tamanho de um hipopótamo sim, doutor, por quê?!

– Mas você chegou a perceber se era macho ou fêmea, velho ou adolescente? – disse Diogo, dramatizando com ironia a situação, como se levasse tudo a sério.

– Isso não tem graça, não tem a menor graça. Você é cheio de ser engraçadinho com coisa séria.

– Claro, um hipopótamo embaixo da cama é sério, muito sério.

– Nessa chácara eu não volto mais, nem morta. O Nelson e a mulher dele podem implorar.

– E se eu disser pra ele consertar a porta da sala, pra ela ficar a prova de ratos gigantes?

– Vou pensar.

– Você tem uma dívida comigo, lembra?

– Dívida com você, eu? Não sei nada sobre dívida, doutor.

– Sabe sim. É um doce. Um doce redondo, meio amarelo, meio marrom, com um furo no meio e açúcar caramelizado...

- Por que esse assunto agora?

- Porque eu posso não falar nada com o Nelson e a porta fica acessível aos hipopótamos, esperando por você.

– Chantagista! – Alexia disse, sorrindo. – Estou de olho em você, rapaz, cuidado!

No dia de regressar, Alexia bateu o recorde de velocidade; não demorou mais de 25 minutos para tomar banho e vestir a roupa escolhida um dia antes. Diogo demorou mais do que o de costume para vestir uma calça jeans, uma camiseta branca com a foto dos Beatles, e enfiar na cabeça o chapéu Panamá que herdou do pai.

Depois do café, em silêncio, colheram limão e nectarina. A floreira ao lado da janela da sala, enfeitada com flores amarelas e violetas, pedia água, mas ficou esquecida diante de outras emergências. Alguém cuidaria disso – esperavam.

Diogo pegou um megafone sobre o armário da copa, inativo fazia alguns verões, e simulou um chamado – Atenção, tem alguma massagista no local? Atenção, repetindo: Tem alguma massagista no local? Ela está sendo aguardada no carro – disse, rindo muito.

Diz a lenda que Alexia não conseguiu dar mais do que uma risada contida.

Dentro do carro, enquanto se preparavam para sair, o rádio insistia em contar as últimas notícias, falar do trânsito, do clima descontrolado, essas coisas. O vizinho gritou com toda força para separar dois cachorros atracados, talvez por causa do mesmo osso.

Por fim, a estrada, movimentada como sempre.   

Em casa, enquanto Diogo ligava para o dono da chácara para agradecer a hospedagem e, com o bom humor de sempre, pedir providências em caráter de urgência urgentíssima, Alexia foi até a cozinha, pegou a assadeira, o leite condensado, o açúcar e o que mais era necessário para pagar a dívida. A massagista dispunha de algum tempo até a hora de sair para o trabalho. Disse que fez com carinho e serviu uma porção generosa ao marido.

À noite assistiram a um filme na TV. Era um casal vivendo uma crise porque o marido sempre poderia fazer as coisas somente no dia seguinte. Como estavam exaustos, o sono chegou feito uma emergência e se apoderou dos dois.

Dormiram ali mesmo no sofá, sem saber o final da história.

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