Julio se desligou da Igreja instituição. Enquanto o rompimento acontecia na prática, um padre com atitude, seu antigo professor de Sagrada Escritura, o convidou para conversar, porque sabia que ele precisava de um rumo para exercer o seu direito de seguir em frente.
O encontro aconteceu numa tarde anônima, dentro do convento onde o frade dominicano vivia. Por coincidência, um dos primeiros espaços religiosos com o qual Julio teve contato na sua adolescência, pouco depois da mudança de cidade.
A pauta não fora previamente divulgada. Uma conversa entre amigos não carece desse artifício – um fala, o outro escuta e ponto final. Apenas da grande porta para dentro se saberia o conteúdo daquele diálogo imprevisto, dolorido e necessário. Para crescer mais forte, a árvore seria podada. O excesso deveria ir para o lixo, porque ele tem a mania de roubar energias que não lhe pertencem mais.
O frade usou o serviço da autoridade e a autoridade do serviço, própria de quem conhece o assunto e deseja provocar uma reflexão necessária naquele momento especial. A partir desse propósito, sugeriu, com franqueza, que Julio devia esquecer, abandonar de vez qualquer possibilidade de continuar trabalhando na ou para a Igreja em troca de alguma forma de remuneração, sobretudo de caráter financeiro. A instituição recebe muito bem os que se oferecem como voluntários. Há quem diga que a exigência do celibato é ideia que nasceu devido ao desejo de não dividir o próprio capital com uma viúva e com os órfãos deixados pelo padre. Não sei. Verdade é que remunerar custa dinheiro, e disso ela não abre mão.
“Contratação, remuneração, isso nunca vai acontecer”, insistiu o padre conselheiro em cada palavra daquele encontro que para Julio soava como um eficaz remédio amargo. E mais: recomendou que o ex-futuro padre abandonasse as buscas pelos caminhos que deixaram de ser seus. A proposta acontecia, no mínimo, porque na Igreja acredita-se que qualquer sucesso nessa área poderia sugerir a outros seminaristas a possibilidade de estudar por conta da instituição e depois se livrar do peso do celibato e das regras clericais para viver feliz. Tudo isso e mais um trabalho remunerado por ela, uma família etc.
Que espírito estratégico aprimorado! Ele seria perfeito, não fosse por um detalhe: alguém pensaria mesmo em se sujeitar ao rigor da vida em um seminário, durante anos, apenas em busca de um diploma que não tem reconhecimento legal, em Teologia, atividade que nem chega a ser profissão e é sofrível no quesito força para abrir portas no mercado de trabalho? Soube de alguém que perdeu o emprego tão logo a empresa soube que esta era a sua formação acadêmica. Melhor não.
Julio regressou com a triste sensação de que acabara de ser desenganado pelo médico. Sem qualquer esperança na sua recuperação e encaminhado para morrer em casa, entre seus familiares e com alguma liturgia. Sem rumo e sem segurança no que dizia respeito ao que haveria de vir, enquanto não chegasse seu último dia.
A transparência tem uma virtude em si mesma, e seu mérito não lhe pode ser retirado: permitir que se enxergue com clareza o que existe ali bem pertinho. Pena que a consciência tenha algo de pontiagudo! Essa virtude, por vezes incômoda, não raro provoca sensações desagradáveis. Sem que ninguém sugerisse a iniciativa, um frade transparente e fiel à própria honestidade intelectual havia aparecido em seu caminho. A mão forte de Deus pedagogo conduzia os fatos dentro da crua objetividade.
Sem rodeios, o padre lhe disse a verdade e o fez com a coragem e a serenidade que a situação exigia. Grandes homens e grandes mulheres emprestam de Deus essa habilidade. Merecia respeito por isso. Em atitude de serviço, ele abriu para Julio uma janela e mostrou-lhe o novo cenário onde deveria construir sua morada.
Teria o padre de ser responsabilizado se o que se avistava através da janela aberta não era necessariamente agradável para o observador? Não. Nem ele, nem a janela têm culpa do cenário que está do lado de fora. A realidade simplesmente é a realidade. E não faz sentido matar o mensageiro por causa da mensagem que entrega.
Nicolas, um velho amigo, e Julio combinaram almoçar no shopping. O tempo seria suficiente para alguma prosa sem pretensões.
– Como foi a conversa com o padre? – perguntou Nicolas, ateu desde os dois anos de idade.
– Foi boa. “Impactante”, diria – respondeu Julio, meio sem encontrar o caminho para as palavras e os olhos.
– Boa?
– Boa... – disse Julio, tomando fôlego e respirando bem fundo – O frade foi honesto. Transparente.
– E?
– E a sugestão é: “procure seu caminho, sem contar com nada da instituição Igreja” – disse Julio.
– Por que “sem contar com a Igreja”? Do que você está falando?
– É isso mesmo. Fim do relacionamento. Ponto final. – disse Julio.
– Você não ficou no seminário durante oito anos, oito preciosos anos, estudando, aprendendo, se preparando?! – indignou-se Nicolas.
– Fiquei. Passado – disse Julio, objetivo, olhando fixo para frente.
– Quer dizer que a Igreja prefere desperdiçar quem está preparado? Preparado por ela? A Igreja não compra nem o que ela mesma produz? – insistiu Nicolas.
– Talvez comprasse, Nicolas, talvez comprasse. Mas não lhe convém – disse Julio, suspirando.
– Por que “não convém”? Não entendi!
– E você pensa que eu entendo? – disse Julio.
– Quando eu digo que a Igreja representa um dos maiores males da humanidade...
– A Igreja tem uma prática que precisa ser revista – disse Julio – Algumas coisas simplesmente não fazem sentido. Poderia aproveitar todas essas pessoas, que depois se aprimoram em áreas diferentes. Poderia somar competências. Ponto pra ela. No entanto... – Julio encerrou a conversa.
Entraram numa grande livraria. O assunto ficou onde estava.
Sentindo que as portas da Igreja católica estavam fechadas para Julio – portas pesadas, que nunca se abririam novamente, em nova tentativa ele buscou na igreja protestante um espaço de expressão da própria fé no interior de uma estrutura eclesial. Mas não se adaptou aos critérios de certa denominação que tratava como absolutas algumas práticas que não decidem a salvação eterna de uma pessoa. Afinal, Deus não gastaria seu precioso tempo com minúcias sem importância.
A honestidade intelectual de Julio, a mesma que aprendeu com o padre dominicano, não aceitou esse jogo. Se aceitasse, teria de justificá-lo para si mesmo. E ele não saberia como fazer isso de maneira convincente. ≡
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