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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Em nome de Deus?

Tomar vacina? Tomar vacina para seja lá o que for? Tomar vacina pra não morrer e não matar por tabela? Não, para Tiago isso era demais, seria pedir que abrisse mão de todas as suas crenças religiosas, criando um problema sério com a liderança da igreja e, talvez, fechando as portas do Céu. Era sua crença.

Na farmácia, a algumas quadras da sua casa, havia lista de espera de ansiosos quanto à palavra – negativo ou positivo – que ouviriam na eternidade que antecede o resultado do teste de Covid. Gente sem qualquer controle da situação, entregue apenas à certeza de risco de morte.

No hospital o teste seria feito na hora, o paciente sendo aconselhado a entrar no aplicativo da instituição três ou quatro horas depois para saber o que o esperava – um período de agonia inevitável.

Tiago não queria viver esta situação incômoda e, se tivesse de ser visitado pela morte, em sua opinião algo enviado por Deus, preferiria recebê-la na mais pura e imaculada ignorância – para ele, a ignorância era uma bênção. Se eu disser que ele era persistente, isso seria uma redundância imperdoável. Apenas vou acrescentar que, mais do que persistência, Tiago era dominado por uma teimosia crônica.

Fiel à sua rotina, de repente ele estava na sala, a TV sintonizada num programa popularesco. Depois estava trabalhando. Depois estava na igreja. Depois na sala. Depois na igreja. Depois na sala. Depois no trabalho. Depois na igreja. Depois na sala. E só depois na igreja. Depois estava dormindo. Depois estava se levantando e indo para o trabalho. Depois voltaria para a sala e para a igreja. Depois repetia tudo de novo. E de novo.

A estação do metrô estava cheia, a linha de sempre repetia o defeito de sempre e o atraso de sempre, criando o estresse de sempre nos passageiros com agenda cheia de médico, escola, trabalho, casa, estação rodoviária e em tantos lugares que não incluí aqui, cheia da vida, que nem sempre se incomoda com agendas.

Sempre evitando sentar em coletivos, bancos de praças ou outros lugares públicos, Tiago estava atrasado. Precisava chegar logo ao trabalho; o relógio e o chefe mantinham a velha mania da intolerância. Havia um caminhão para carregar logo cedo, a transportadora administrava um cronograma apertado. Difícil saber quem era mais suíço e eletrônico, se o chefe ou o relógio preso bem próximo do teto, para que ninguém alegasse ignorância.

Úrsula também estava atrasada. O horário de visitas, no hospital, era curto demais para tamanhos atrasos de trens circulando com velocidade reduzida. O almoço seria feito depois, tudo já estava preparado, apenas esperando pelo calor do fogo.

Almoçaria sozinha, porque o único filho iria da faculdade para o banco, sem escala, onde trabalhava como Caixa para equilibrar as colunas Receita, Despesa e Saldo da sua vida e de seus pais. Não era possível viver no cartão de crédito, em muitas parcelas, ou convivendo com o estouro incômodo do Cheque Especial. 

- Engraçado, né, irmã... – disse Tiago, a Úrsula, que estava ao seu lado.

- Oi! O que é engraçado? – respondeu.

- As pessoas usando máscara.

- Não é gostoso. Mas é necessário. Por nós e pelos outros, não é mesmo? – Úrsula checou as horas novamente, gesto que havia repetido há uns oito minutos, se tanto.

- Mas Deus não disse que é pra fazer isso. – Tiago queria ser visto como um missionário, cordeiro entre lobos que, segundo ele, não teriam um futuro nada brilhante no dia do Juízo Final.

- Deus não disse isso? Será? Mas ele nos deu inteligência suficiente pra decidirmos se queremos viver, morrer e matar. É tudo uma questão de bom senso. De caridade, não acha?

- Bom senso... O que é bom senso, irmã? – queria demonstrar conhecimento profundo, filosófico.

- Bom senso? Bom senso é escolher com inteligência e equilíbrio.

- Eu é que não quero morrer! Por isso não quero nem pensar em contrariar meu Senhor – Deus seja louvado!

- Não quer morrer do quê? – disse Úrsula.

- Não quero ser castigado por Deus.

- Mas Deus não brinca de castigar. Só que a Covid não brinca e mata. A doença não sabe que está matando. Mas a gente sabe.

Sentada em um banco ao lado, enquanto lia O velho e o mar, de Ernest Hemingway, Renata não segurou a curiosidade e ouviu toda a conversa. Desceria logo, mas tomou posição. Com voz clara, como se novamente estivesse diante dos seus alunos de Biologia, fez um compacto sobre como o vírus entra no corpo e pode condenar à morte. “O vírus não é religioso e não tem noção do estrago que faz na vida das pessoas. Mesmo daquelas que frequentam religiosamente uma igreja” – disse.

- Cozinheira, professora, essa gente pensa que sabe tudo – disse Tiago, em voz baixa, quase um sussuro, olhando pela janela.

- Pode ser que cozinheira e professora não saibam muito, você tem razão – disse Renata. Mas sabem que Covid mata. É só aprender a lição!

Úrsula checou as horas novamente. Um senhor de cabelos brancos e bengala surrada entrou e num instante houve mais banco livre do que passageiro necessitado.

“Atenção, devido a problemas técnicos, estamos circulando com velocidade reduzida” – advertiu o sistema de som, dentro e fora do trem.

“Atenção, devido a problemas de informações erradas, estamos acabando com a Covid com velocidade reduzidíssima” – disse Renata, como se conversasse com alguém sentado ao seu lado. Os passageiros mais próximos, a começar pelo rapaz de cabelos compridos que no braço esquerdo exibia a tatuagem de um dragão com uma asa delta na boca e a imagem de uma gazela dependurada no topo da Torre Eiffel.

Muita gente desceu na próxima estação, no centro da cidade. Gente com agenda cheia de compromissos a cumprir. Por exemplo, cuidar da saúde e não dizer que a morte era vontade de Deus. Morrer sabendo que pode evitar a tragédia, isso é suicídio, e brincar com um vírus que mata até por tabela é homicídio.

Um dia eu soube que na vida é assim: quando tomamos o trem errado, não adianta ficar mudando de vagão. A viagem sempre estará comprometida. 

Venha de onde vier, desinformação é trem errado. Para quem embarca, pode não ter volta.

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