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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Em busca do tesouro

Naquele dia, Ivan teve uma ideia iluminada: fugir. E como se fugisse de uma prisão, ele caminhou rapidamente pelas duas quadras que separavam a tipografia e seu local de trabalho.

Respirou fundo. Sentia existir em sua decisão algo de pretensioso, mas permitido. Felizmente, ninguém com juízo usado fora de hora o advertiu sobre o perigo de tentar essa aventura e mesmo da impossibilidade de se chegar a algum lugar. Assim, como não sabia que poderia ser impossível, seguiu adiante e fez. Ele filtrava informações.

Ivan preparou-se interiormente para ouvir um não ou qualquer resposta parecida. Ele falaria com um senhor que, dentre outras coisas, compunha, imprimia e distribuía, aos sábados, o seu jornal. O periódico não encontrava concorrentes na cidade. Nos seus textos, carregava um forte odor de literatura e poesia, como convinha à época. Era feito apenas de notícias locais. O mundo era povoado por uma leva de escritores, mais do que de cientistas e jornalistas sérios.

– O que é preciso para escrever no jornal? – perguntou o garoto que, se por um lado tinha medo de sangue, por outro não fugia de um microfone, sua segunda paixão.

– Sobre o que você quer escrever? – respondeu o proprietário e diretor do periódico.

– Não sei – disse Ivan, buscando em algum lugar o substantivo que lhe faltou para uma resposta precisa e consistente como a circunstância pedia.

– Escreva alguma coisa e mande pra eu ver. – aconselhou.

No escritório contábil, um casamento que não deu certo. Uma experiência chata, enfadonha, clamando pelo divórcio, enquanto praticava seguidos atos de rejeição. De lá só lhe interessava a enorme Enciclopédia Delta Larousse, que vasculhava na hora do almoço, enquanto o proprietário não chegava. O salário? Pobre salário!

Na comunicação, ao contrário, um encontro amoroso, cheio de romantismo, com direito a frio na barriga. Nunca o adultério fora uma prática tão sagrada, coberta por todas as bênçãos vindas do céu. Nenhum muro dispunha de força suficiente para conter o apetite de Ivan.

O garoto saiu dessa breve entrevista com as pernas trêmulas; inclusive o assovio rotineiro silenciou. Ivan sustentava-se na motivação que o levou a dar o primeiro passo. Foi logo para o escritório – quase não conseguiu encontrá-lo. Registrar notas fiscais? Não. Registrar ideias, organizar as que estavam embaralhadas? Sim, é claro que sim. Primeiro a devoção, depois a obrigação – ele inverteu o ditado que aprendera dos mais velhos.

E quanto às notas fiscais, aos impostos a serem cobrados rigorosamente dos clientes e devidamente recolhidos à coletoria ou alguma agência bancária? “Assuntos sem maior importância, que podiam esperar” – Ivan pensava. Nada essencial, apenas importante, talvez acidental. Podiam esperar. E esperaram. Até podiam reclamar. A quem? Ao bispo? O palácio episcopal ficava há mais de duzentos quilômetros de uma distância preenchida em parte por estrada de terra, sem contar que a ligação interurbana era difícil e estava pela hora da morte.

O jornal deveria receber, sem demora, algo em que o nome do autor apareceria escrito logo após a palavra “Texto:”, como era praxe na época. Livros de Entrada e Saída de Mercadorias? Livros de Inventário? Não. Romances. Livros técnicos, comprados com o dinheiro de que não dispunha, e onde buscaria conhecimentos como se fosse um exegeta experimentado. Prioridade, urgência máxima. Era preciso ler sobre tudo. Por isso vasculhava revistas semanais e mensais compradas na única banca da cidade, publicações cujo conteúdo dos artigos provocava a reflexão. Todas adquiridas por um preço abaixo do valor, apenas por já estarem sem a capa e terem validade vencida.

Se o problema era o fato de ter deixado de registrar a nota de uma transação comercial feita por um cliente, a solução era simples, concluiu: apaga-se a data do documento e lança-se no mês seguinte – o que importava era que nada fosse excluído, e aquela nota fiscal nem era assim tão exigente, saberia esperar. Pena que Ivan se esqueceu de combinar com os Russos, a Fiscalização.

Mas isso também não era sério. Porque sério mesmo era o texto, ardiloso, que insistia em não se revelar, transformando-se por vezes num grande mistério a ser desvendado. Coisa séria era a palavra não encontrada, escondida em algum labirinto impensado, ainda que óbvio. Ou a ideia que não vinha. Ou aquela que chegava desengonçada, reclamando uma ordem da qual nem mesmo tinha consciência. Isso sim era terrível, merecia trabalho árduo, missas e orações comunitárias, noites em claro, perda de apetite, apenas para lembrar algumas reações.

Nesse caso, Ivan não pensou nas consequências. Verdade é que ele teve de assumir o custo financeiro da sua decisão. Por conta desse caminho, considerado pouco ortodoxo para a sisuda legislação fiscal, ela reagiu sem demora. Foi severa e definitivamente incapaz de entender uma grande paixão literária com traços tão marcantes, a ponto de ignorá-la por completo. Como punição, injusta, Ivan teve de deixar o salário de um mês para pagar uma multa aplicada ao cliente. Desnecessário dizer que o fato redundou num enorme buraco na sua tímida contabilidade pessoal. Talvez o primeiro de uma série. Mas, como teria dito um folclórico profissional do meio esportivo, que conheceu depois, “quem está na chuva é para se queimar”.

Outros espaços haveriam de ser ocupados, como um exército que avança aos poucos, com movimentos bem estudados. E se é verdade que havia um espaço em condições de separar Ivan e esses momentos dignos de comemoração, não era menor a sua força e determinação para avançar e desbravar aquelas terras que escondiam tantas e diferentes alegrias. Assim ele iria caminhar.

O garoto de cabelo desbastado, corpo compacto, pernas tortas e pele oleosa apaixonou-se definitivamente pelo jornalismo e pela literatura de boa qualidade, seres alados que descobriu aos poucos. Um grande autor indicava o outro, e essa era uma pista importante para que ele estabelecesse novos e surpreendentes encontros com esses mestres.

Autodidata formado pelo desejo sem limites de saber mais e mais, aos poucos e sem se dar conta, Ivan iniciava sua biblioteca pessoal, espécie de útero materno, feliz por lhe dar à luz.

A paixão se convertia em amor, com a consistência e o poder transformador que ele tem, determinado a realizar o seu trabalho. A modesta biblioteca só fazia aumentar. Exigia mais espaço. Estava recheada de todos os lados. Eram livros comprados meio às escondidas, com dinheiro que economizava ao abrir mão de outras alegrias, consideradas menores, para que o espanto alheio não lhe impingisse qualquer sentimento de culpa.

Ivan tinha 15 anos quando, para surpresa de todos, publicou seu primeiro artigo. Primeira página. Depois vieram outros. Um pouco cedo para começar, como talvez pudesse sugerir o Direito Trabalhista ou algum profissional da saúde? Nem tanto. Essa é uma questão relativa. Para um adolescente, uma cidade pequena é grande o bastante para esse primeiro passo.

Vivida a primeira experiência, com um artigo ainda pacato, Ivan preservou sua fidelidade ao projeto inicial e primeiro amor. Até que um dia, finalmente, as páginas do maior jornal do país abriram suas portas para ele. Foi a glória, celebrada com a dignidade que o fato merecia.

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