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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ E a palavra se fez carne

Conheci J.R. quando treinava na mesma quadra, depois dele gastar o dia oferecendo serviços para médias e até grandes empresas. J.R. fazia uma nova investida, agora no ramo gráfico. Tentava um caminho diferente, a fim de repor a perda de um emprego como Gerente numa loja de roupas masculinas. Naquela semana, ele, a mulher e os dois filhos ainda teriam quatro refeições diárias.


“Se conseguir algum resultado, ótimo” – me disse, durante um aperitivo que amaciava a garganta no final de uma tarde com ares de verão. Com a voz grave de sempre, falava como quem havia acabado de jogar o anzol no rio pela milésima vez e que, igualmente pela milésima vez, iria vê-lo, de volta, sem ao menos a pequena isca de que dispunha. Mas ele insistia na prática de ser insistente, certo de que só faltava mais um golpe para que a rocha se partisse em duas. Então ele batia forte novamente. Precisava tirar leite de uma pedra.


Confesso que no vôlei ele sempre dava trabalho aos adversários. Usava uns truques que facilmente o tirava do chão e lhes deixavam sem rumo certo.


No entanto, no terreno fora dali, o cenário era feito de traços que em nada lembravam uma bola bem sacada superando as redes e conquistando pontos. Vida profissional irregular, saúde enferma, finanças em pedaços, tudo formava um time coeso, com um ataque difícil de segurar, porque atuava feito ondas de um tsunami. J.R. sentia uma tristeza crônica. Carl Gustav Jung andou dizendo por aí que a felicidade não teria o mesmo significado, se não fosse equilibrada pela tristeza – eis o que me disseram. Equilíbrio, para J.R., era apenas um desejo que falava às paredes.


Tudo somado, tornava-se cada vez mais urgente obter um novo contrato, talvez repetindo um cliente antigo, agora revisitado e repaginado. “No passado comprei calças e camisas da sua fábrica. Hoje vendo soluções em serviços gráficos. Você pode me atender para uma conversa?” – disse J.R. ao antigo fornecedor, tentando parecer familiar. Jogava um jogo em que compradores ditam regras e vendedores as obedecem. Agora ele era vendedor.


Não importava a que custo, era urgente vender. E tudo bem se fosse um pequeno serviço, como blocos de papel timbrado, cartão de visita, envelope, qualquer coisa assim. O que contava era conseguir mudar de lado, alterar o script e chegar a algum resultado. Coagido pela necessidade, J.R. buscava, a qualquer preço, a segunda resposta certa para questões que não se esclareciam, quando aplicava métodos e instrumentos convencionais. Estava difícil reverter o jogo no qual levava uma goleada histórica. Mas o cenário podia ganhar novos contornos, novas cores. Tudo de que precisava era seguir em frente.


Fosse ele um carro, diria que lhe faltavam alguns tantos “cavalos de potência”. Por isso andava devagar, pensava devagar, sofria devagar. Quando entrava em campo, já havia contra ele um coração que batia menos, uma perna com menor velocidade, um pé que chutava para a direita e tudo o que conseguia era uma bola torta, quadrada, correndo para uma esquerda inviável que levava o apito à boca do juiz para esgoelar a penalidade indesejada. Mas o cenário podia ganhar novos contornos, novas cores. Bastava apenas que seguisse em frente.


Tudo comprometido, portanto, caro torcedor. Mas J.R. não tinha o privilégio do esquecimento, um habeas corpus que ao menos lhe permitisse o direito de responder em liberdade. Queria encerrar a carreira, mas não sabia por que diabos seu técnico insistia em mantê-lo na lista dos que vão enfrentar o adversário. E ele sabia muito bem que um único ator não pode decidir sozinho pelo encerramento das filmagens, tarefa que acontece em outra instância. De um jeito ou de outro, a vida é uma história que deseja ser contada até o fim.


Bola em jogo e lhe faltavam forças. E se juntava a isso a falta de trabalho. E a falta de dinheiro para comprar ao menos os itens básicos da próxima semana. E a falta de perspectiva. E a falta de um “sim”, do resultado positivo, ainda que temporário. E da gargalhada. E da conversa jogada fora. E do relaxamento.


E se juntava ainda mais: o micro-ondas havia queimado fazia uma semana. A TV sintonizava apenas um canal. A impressora já não imprimia. O plano telefônico tinha mais limitações do que serviços. O orçamento do dentista para um serviço urgente. A ausência de retorno financeiro na venda de peças de artesanato. A esnobação do senhor bispo quando do pedido para exercer o diaconato permanente. A pequena empresa que considerava suficiente ele deixar seu currículo com o guarda, plantado na calçada. E essa conversa que não tinha o espaço necessário para acomodar todas as vivências e sentimentos desordenados.


A saúde física brincava de comprometer o equilíbrio mental. E recebia em troca um punhado de pedras na vesícula, uma anomalia no intestino, um desânimo diabólico e paralisante. O rendimento caia ainda mais. J.R. já não sentia vontade de nada, embora desejasse tanta coisa que já não sabia onde havia se escondido.


Ele alimentava a ideia de estar suspenso do sagrado direito de fazer gols. Mas, sem escolha, ainda tinha de correr durante 90 minutos, bater pênaltis e tirar o time da sua vida da zona de rebaixamento. Da arquibancada, a torcida gritava, insistente, um inócuo “você não pode ficar assim, não pode se entregar!”. Agia como se esse aviso fosse o portador de um milagre capaz de devolver aos seus ossos ressequidos a vida que lhes faltava, como no episódio vivido pelo profeta Ezequiel.


Mas o cenário podia ganhar novos contornos, novas cores. Não precisava muito. Bastava seguir em frente. E ele seguiria.


Por isso escrevia, na busca desesperada de fugir da loucura eminente. Tentava explicar ao menos para o computador o que acontecia lá dentro dele. E a máquina com capacidade relativa de resolver problemas, iria salvar as palavras, sem se dar conta de que isso estava longe de significar a salvação da sua existência asfixiada por esse drama de um único ato, partida sem chance aparente de vitória.


E então, finalmente, o cenário ganhou novos contornos, novas cores. Tudo de que precisou foi seguir em frente. Seguiu. Na jornada do herói, desenhada por Campbell, voltava com o elixir.

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