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■ E a música não tocou

  • Foto do escritor: Rubens Marchioni
    Rubens Marchioni
  • 29 de mar. de 2023
  • 5 min de leitura

Na cantina da universidade, o movimento fervia. Logo pela manhã, o suor deixava marcas na roupa. Em pouco tempo, Franco entraria numa reunião com os responsáveis pela organização da formatura da turma de Medicina. Eles queriam ter música ao vivo e pensaram contratar um violonista profissional para abrir e encerrar a cerimônia. O tema do evento seria a criatividade, essencial ao médico na hora de extrair diferentes melodias de um único instrumento para salvar vidas, quando uma situação crítica exigir – sempre exige.

– Calma, calma, tem refrigerante pra todo mundo – disse a balconista a Franco – Não precisa ficar nervoso, já vou atender o senhor.

– Eu não estou nervoso! Eu não estou nervoso! Vou ter de repetir? – respondeu. Além de tudo, a botina de couro novo estava machucando seu dedo sensível. O rosto quadrado lhe dava um ar simétrico e organizado, talvez sério demais. E Franco tirava proveito disso.

Bem próxima da cena, Paula folheava um livro sobre mudança de hábito e viu cada detalhe acontecendo – “Gente impaciente!” – pensou. Sabia muito sobre Química, disciplina que ensinava também no curso de Farmácia. Mas não entendia a química que acontece entre algumas pessoas, capaz de provocar tanto estresse. Ela conhecia aquele rapaz por foto.

– Oi, eu sou a Paula, trabalho aqui. Você é o músico... – disse, fechando os olhos com pálpebras grandes, enquanto tateava o terreno da sua pergunta. Naquele dia, o cabelo repicado de Paula exibia cor de trigo. Era o modelito da semana.

– Sim, sou eu. Prazer, Franco.

– Está quase na hora da reunião, eu também vou participar. Já podemos ir pra lá.

O auditório fica aqui perto, depois do prédio da Teologia.

– Quer dizer que aqui tem faculdade de Teologia também?

– Tem. Essa universidade é confessional, forma os próprios líderes.

– E o que estuda a Teologia?

– Estuda as coisas de Deus. Aqui eles preparam os pastores que trabalham na igreja.

– Pastores? Você disse “pas-to-res”?

– Sim, pastores. Achou estranho? A escola nasceu a partir daí.

– Não. Só fiquei meio decepcionado. Pastores?! Tem certeza? Aquele pessoal que pede o dízimo?

Do bolso do paletó surrado, Franco puxou um cachimbo, no formato certo para seus lábios largos. Não acendeu.

– É. Eles precisam de dinheiro pra manter o trabalho. Como eu li uma vez, receber o dízimo é bíblico, mas explorar as pessoas e usar mal o dinheiro, isso é diabólico. Depende de cada um.

– Só uma curiosidade: o curso dura quanto tempo?

– Quatro anos, com aulas de segunda a sexta. As aulas são dadas por mestres e doutores. Gente séria, que não ensina a explorar as pessoas, isso eu garanto.

– E por que ninguém me falou isso antes? Se soubesse...

– Se soubesse...

– Se soubesse que aqui formava pastores não teria vindo. Me falaram que era faculdade de Medicina.

– Também. Aqui tem um dos melhores cursos do país. Teologia, Medicina, Farmácia... Eu ensino Química no curso de Farmácia e de Medicina.

Paula estava assustada com tudo aquilo, assim de repente. Afinal, ela havia ido à cantina apenas pra comer um pão de queijo, tomar um refrigerante e um cafezinho, porque precisava reforçar as energias, depois de uma aula intensa.

Franco estava visivelmente perturbado. Para uma pessoa que, em casa acendia todas as lâmpadas e evitava olhar certas peças para não perceber que alguma coisa estava fora de lugar, tocar numa escola confessional significaria a própria desordem. Afinal, seu maior desejo era ser reconhecido como ateu e revolucionário.

Ele olhou na direção da saída. Parou, coçou o pescoço e refez os cálculos. Naquele momento, a cabeça de Franco era um aplicativo refazendo automaticamente a rota. “Em sessenta metros, vire à esquerda”, uma voz interior o orientava. Passado o portão, “Você chegou ao seu destino, a rua. Cai fora, rapaz, isso aqui não é pra você. Te enganaram. Aqui forma pastor” – dizia seu interior.

“Calma, Paula, fique calma” – a professora refletiu – “eu não sei o que esse maluco vai fazer”.

– Paula... é esse o seu nome, não é mesmo? – disse o músico. – Olha, me faz um favor, avisa o pessoal que eu não vou poder ficar.

– OK, mas..., algum problema?

– Sim. Lembrei que tenho uma reunião urgente agora, e depois vou levar minha mãe ao médico e tomar sorvete com uma amiga. Não vou poder ficar. Depois eu ligo e falo com alguém.

– Tudo bem, eu falo. Falo só isso ou menciono o verdadeiro motivo da sua desistência?

– Verdadeiro motivo? Quem falou em verdadeiromotivo?! Não tem verdadeiro motivo, moça!!

– Tudo bem, Franco, é esse o seu nome? Não tem verdadeiro motivo. Tem a reunião, sua mãe e o sorvete. Eu aviso.

Franco tropeçou na plantação de azaleia, atravessou o portão da universidade e entrou no estacionamento. “Pastores, essa é boa!”. No consultório, deu uma palavrinha com sua mãe, que acabara de atender uma paciente incomodada com um caroço na região do seio, o terceiro caso visto pela oncologista naquela manhã.

– Filho, você disse que ia me levar ao médico?! De novo? Só nesta semana, essa foi a terceira vez que “eu fui ao médico” com você! Se esqueceu que eu sou médica e trabalho num hospital?

Agitada, Paula subiu os degraus que levavam para o auditório. Na entrada, do lado direito, havia um cetro, e ele não sabia de nada, nem de preconceito. Também não sabia quem esqueceu aquela boina aos seus pés.

– Bom dia, pessoal. Ooolhaaa!!! O auditório está ficando lindo. Essa formatura vai ser o máximo – disse Paula, sentindo que todos já estavam prontos para discutir detalhes da presença de um músico no evento.

– Só falta o músico – disse Fátima, encarregada da organização. – Só falta o músico.

– Pois é, o músico... não vem. Isso mesmo, ele não vem.

– Como assim, ele não vem?!

– É isso que você ouviu, minha amiga, ele não vem. E sabe por quê? Porque aqui tem curso de Teologia, forma pastores, “aquele pessoal que pede o dízimo”, como ele mesmo disse.

– Ele disse?! Pra quem “ele disse”?

– Pra mim. Por acaso nos conhecemos na cantina, durante o intervalo. Ele estava nervoso, precisou ser acalmado.

– E daí?

– Daí que me ofereci pra acompanhá-lo até o auditório. Quando ele viu a palavra Teologia, escrita em letra caixa, identificando o prédio ao lado, repensou. Me falou o motivo, disse que depois ligaria, inventou umas desculpas e foi embora. Assim.

Fátima respirou fundo. Contou até três, até trinta. Manteve a cautela básica, como convém a uma profissional.

– Ouviram, pessoal? É isso, não tem reunião com músico. Uma pena. Mas eu conheço um músico de primeira, que toca numa orquestra. Vou falar com ele. É isso.

A quase reunião foi encerrada. Sem trilha musical. Assim.

 
 
 

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