Na avenida onde a escola estava plantada já não se podia distinguir entre rua e calçada. A chuva acabava de unir as duas. Acelerando para vencer a correnteza, os carros lançavam jatos de água que banhavam os muros e ensopavam as pessoas em fuga. Era muita água, vinda de um céu estressado e com cara de poucos amigos.
Milena estava ilhada dentro do próprio carro, em frente ao edifício com arquitetura antiga e ares imponentes de local sagrado. Ela faria uma reportagem sobre o tema da evasão escolar – o problema intrigava autoridades e mobilizava diretorias de ensino, secretarias e governos. Foi protegida por uma capa, um guarda chuva generoso, com ares de guarda sol e muito bem vindo. Todo o aparato que lhe deu acolhida, no entanto, não a protegeu de ter o calçado e a calça branca devidamente encharcados de lama escura.
Identificando-se, Milena pediu que a anunciassem à diretora, que estava impedida de atendê-la no momento. A reunião com os pais de alguns alunos envolvidos na prática insistente de bullyng ainda se estenderia um pouco. Pediram que aguardasse na Sala dos Professores.
Armando já estava lá quando Milena entrou. Empurrou o cachimbo e o chapéu para o lado, deixando exposta a calvície precoce – suas unhas eram sujas e mal cuidadas. Tenso como se esperasse um segundo para o estouro de uma bomba, tinha os olhos arregalados de medo por causa da tempestade e por pouco não fugia para debaixo da mesa em busca de proteção.
– Por favor, fique à vontade. Muito prazer, minha jovem. Eu sou Armando. Você é a repórter, imagino.
Milena confirmou a suposição.
– Acho que vamos participar da mesma conversa – disse ele à jornalista que administrava o desconforto da roupa molhada e a pouca expectativa de uma volta tranquila para a redação do jornal depois de todo aquele aguaceiro. – Eu sou especialista em educação - disse.
– Como vai? – disse ela, sem esconder certa falta de sintonia entre a fala e os olhos. Sua atenção se voltava para o céu escuro e furioso que a esperava lá fora. Milena sentou-se numa poltrona encostada na parede próxima à porta.
Alguns minutos depois o supervisor chegou. Como se fosse um jogral, ao mesmo tempo convidaram Milena para ocupar um lugar em volta da grande mesa. Falaram sobre amenidades, coisas como clima extremo, política, terremoto, guerra em andamento e outras quinquilharias dessas que se usa para passar o tempo. Nos corredores havia o barulho das crianças, mas o ruído não chegava a incomodar o objetivo daquele encontro.
A diretora chegou. Feitas as apresentações de praxe, iniciaram a conversa atrasada.
– Eu gostaria de fazer algumas perguntas pra matéria sobre evasão escolar.
– Sim, fique a vontade – disse a diretora.
– Diretora, qual é, em sua opinião, o principal motivo da evasão escolar?
– Não sei se tem o “principal”. Mas um deles, muito grave, é o pouco suporte emocional encontrado pelo aluno por parte da família. Você sabe, a questão de se sentir aceito pelo grupo não é tão simples para o aluno.
– Posso discordar? – disse Armando, já discordando.
– Acho que tem um problema bem maior do que esse: o desinteresse pelo aprendizado.
– Sim, claro, as duas coisas andam juntas... – respondeu o supervisor. – Mas será que isso justifica tudo quando o assunto é evasão?
– Não sei se “justifica tudo” – disse Armando. – Mas junte as duas coisas e mais a ausência de atividades extracurriculares, as aulas desinteressantes, a falta de metodologia de aprendizagem que atraia o interesse do aluno... Como é que o aluno vai se interessar pelo aprendizado?
Milena mantinha os ouvidos e um dos olhos nos personagens do debate fora da pauta que se iniciava. O outro olho cuidava de fazer anotações não apenas de palavras, mas, sobretudo, da linguagem gestual da diretora e de Armando, desconfortáveis no centro daquele palco.
– Voltando ao tema do desinteresse pela aprendizagem... – disse Milena.
– Desinteresse pelo aprendizado, isso mesmo, você tocou no ponto. O resto..., bem, o resto é quase nada – disse Armando.
– O resto é “quase nada”? Tem certeza disso, Armando? – disse o supervisor.
– O que teria, além disso, Bernardo? O que teria de relevante além disso? Quase nada! – disse Armando.
– Sim, claro que tem o desinteresse pelo aprendizado! Tem as dificuldades de aprendizagem, claro que tem! – disse a diretora. – Mas tem o outro lado, que não é só do professor ou do aluno.
– Que outro lado, diretora? Do que a senhora está falando, dona Rute? – disse Armando.
– Vamos chamar de o “lado de fora”. Por exemplo, a falta de dinheiro para pagar a mensalidade, no caso das particulares. Gente sem dinheiro muda o filho de escola. Ou, pior, tira o filho da escola – disse Rute.
– Bem, mas a escola não tem culpa disso! – disse Armando.
– Claro, a escola não tem culpa. Mas sofre as consequências, certo? – disse o supervisor.
– Diretora, a senhora falou em “lado de fora”. Também tem a questão da gravidez, não é mesmo? – disse Milena.
– Sim, tem a gravidez não planejada na adolescência, por desinformação. Você acredita, Milena, que o número de garotas grávidas com idades entre 15 e 19 anos só aumenta? Consequência: as meninas saem da escola. Primeiro, pra cuidar da gravidez. Depois, pra cuidar da criança. Criança, aliás, que logo vai para a escola viver tudo isso que a gente já falou até aqui!
– E ainda tem a questão da insegurança alimentar. Dos alunos que vêm pra escola somente por causa da merenda. – disse o supervisor. – Criança com fome não aprende!
– Tudo bem, mas continuo achando que o problema maior, o que mais provoca evasão escolar, está dentro da escola – insistiu Armando. – O problema é com os professores.
– Dentro da escola é um lado do problema... Se os problemas do lado de fora não são resolvidos, fica ainda mais difícil resolver os internos – disse a diretora.
Milena estava visivelmente desconfortável: marcou uma entrevista e ouviu um debate que gerou muito calor e pouca luz. O clima ali não era lá essas coisas, havia raios e trovões, o fogo caminhava depressa para o barril de pólvora.
As perguntas deixaram de ser feitas por ela, que agora colhia respostas inesperadas vindas de todos os lados. Bastou à jornalista estalar os dedos para que atores furiosos, falas bem elaboradas, como se estivessem num tribunal, entrassem em cena.
– Bem, acho que todo esse conteúdo vai me dar uma boa matéria. Preciso trabalhar esses elementos e começar a redação, tenho prazo a cumprir – disse Milena com um sorriso sem jeito, levantando-se e recolocando no lugar a cadeira. Tudo feito com moderação e cautela.
A jornalista despediu-se cordialmente. Disse que gostaria de retomar a conversa, se precisasse.
A diretora voltou para a sua sala. Ainda teria mais um encontro de trabalho. Convidou o supervisor para uma conversa, talvez sobre o próximo trabalho. Não deixaria a escola antes que até as menores tarefas estivessem concluídas; não suportaria o transtorno dessa prática.
Armando pegou o carro e, driblando o que ainda restava da muita água pelas ruas, foi até uma joalheria a duas quadras dali.
– Jovem, tem certeza que o preço desse anel está certo, é isso mesmo? – perguntou à vendedora solícita.
– Sim, é isso mesmo. Até ontem esse valor era maior, mas agora está em promoção – ela disse. – O senhor deseja ver outros modelos? Por favor... – disse, apontando a cadeira em frente a um pequeno balcão com tampo de vidro e coisas lindas e cheias de cifrões lá dentro.
– Me diz uma coisa, jovem: o preço está alto desse jeito por causa de problemas do “lado de fora” também ou é a joalheria que quer aumentar o lucro?
– “Lado de fora”? Não entendi – disse a vendedora.
– Deixa pra lá, não quero me estressar. Já basta a diretora – disse, enquanto saía de maneira pouco elegante, deixando a vendedora sem entender nada e falando sozinha.
Para a Educação, a evasão escolar não era o único problema. A forma como alguns profissionais se relacionavam fora da escola também não ensinava quase nada. Ou ensinava muito sobre como não pensar, falar e agir.
Vivendo e aprendendo – diz o clichê. ≡
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