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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Criação e eternidade

Quando não está entregue ao seu trabalho de biomédico, Edney gosta de escrever, uma das suas facetas de homem comunicativo. Passa horas manuseando caneta, papel e computador, discutindo com as palavras e, mais do que isso, fazendo amor com elas. Quando o vejo na sua lida, relembro um concurso que devia eleger a lápide mais criativa de que se tem notícia. A vencedora dizia algo tão deliciosamente forte como “Tive com a vida uma briga de namorados.”. Edney tem com as palavras um romance feito de brigas, reconciliações e nenhuma despedida. É do jogo.


Cauteloso e ajeitando a barba falha, o cabelo escasso e trazendo nos olhos o pressentimento de que acertara no propósito da mensagem, ele me pediu: “Você pode dar uma olhadinha no texto dessa carta? É uma homenagem. Uma homenagem a alguém especial”. Edney só não me surpreendeu porque já o conheço bem. Comecei a leitura, certo de que diante dos olhos eu tinha um belo exercício de nostalgia e gratidão.


“Helena, querida. Estou no meu quarto, ouvindo Celtic Music e escrevendo meu próximo livro. Então, por um instante, a saudade me levou até a nossa terra natal. Você, minha primeira catequista, ensinando sobre Deus, para um pequeno grupo de meninos e meninas. Era confortador pertencer àquele grupo. A primeira mulher me deu a vida; você, a segunda, revelou-me a fonte da vida e da ressurreição que produz eternidade.


Você não dispunha de uma sala com quadro magnético e outras tecnologias, nada disso. Cheia da segurança incomum na adolescência e com olhos aguçados e calmos, falava protegida pela sombra de um bambuzal, o perfume da grama cortada pela manhã e os cuidados dos raios de sol crepuscular. No centro da cidade, o serviço de alto-falantes fez a trilha sonora do encontro, reproduzindo uma antiga canção de Natal.


A essência de Deus, na sua boca, harmonizava-se com o som emitido pelo vento, ao tocar nas folhas daquelas plantas verdes como a esperança. Isso me fez pensar: sobre você, o teólogo Leonardo Boff diria algo como ‘irmã assim, só mesmo sendo mãe; mãe assim, só mesmo sendo irmã.’


Quando for para o céu, daqui a décadas sem fim, você será nomeada por Deus para ensinar aos anjos. E todos vão gostar muito de reaprender o que já sabem desde a criação do mundo. Afinal, você sempre surpreende.


Lembre-se: apoiados nas asas da liberdade, eles vão brincar o tempo todo, mesmo sabendo que, na volta para casa não encontrariam o prato de curau fresquinho feito por mãos matriarcais, íntimas da prática de alquimia gastronômica, executada num prosaico fogão de lenha.


Mas isso, esse comportamento dos anjos, isso nada tem a ver com falta de seriedade. É que, para eles, ensinar e aprender é um jogo muito divertido. Algo que se faz procurando por respostas que se escondem, camufladas, no corpo de perguntas acostumadas à prática brincalhona do esconde-esconde. Será no céu o que foi para mim: a mentora competente que ensina, motiva e oferece instrumentos seguros para a caminhada.


Então deixei um pouco o que estava fazendo e passei por aqui, porque precisava dizer essas coisas tão importantes de serem ditas. Pronto, falei. Um beijo cheio de saudades. Edney.


P.S.: Medo de atravessar ponte? Ah, esse medo, minha querida, esse medo..., você sabe.”


Trabalho concluído, ele o guardou no silêncio da alma, ajeitou os óculos e foi embora, caminhando passos que por pouco não o retiravam do chão. Amém.

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