Era um sábado feito de sol. De tênis preto, bermuda amarela, bata vermelha e passos leves, Eulália saiu pela manhã, como fazia diariamente. Atravessou todas as ruas, driblou todos os semáforos, e era como correnteza vencendo os obstáculos para chegar mais longe, tendo o mar como limite.
Subiu a avenida, cumprimentando conhecidos e pessoas nem tão próximas assim. O cabelo preso ignorava a pretensa força do vento, humilhando-a enquanto se mantinha rigorosamente em ordem.
Na sorveteria tradicional, Eulália pediu um sorvete de chocolate amargo, pra dar energia e aumentar as calorias que talvez queimasse, mas não agora. Fez uma parada breve no supermercado que se atravessou em seu caminho. Comprou meio quilo de cebola roxa. No mais, teve o cuidado necessário para reservar o dinheiro indispensável à reposição da garrafa de vodka que lhe dera seu último gole de relaxamento na noite solitária, embora valorizasse muito os relacionamentos.
Sempre buscando aceitação, dessa vez encontrou Miguel, um jovem maduro com interesse em cinema, embora quase sentisse orgulho por trabalhar como biólogo. Ele desejava ser roteirista, e tudo era a oportunidade de pensar na estrutura de um produto para uma tela doméstica ou comercial, telinha ou telona. Era assim que imaginava contribuir para que o mundo ficasse um pouco melhor. A ideia de um possível fracasso o atormentava, fazia ameaças de um final infeliz para história da sua vida.
Miguel guardou os óculos de sol de procedência duvidosa e entraram na choperia que mantinha abertos os seus braços. Iam tomar a saideira de ontem.
Passaram pelo pequeno jardim na entrada, tudo muito bem cuidado, mas tudo sem quase nada, porque a natureza não tem pressa. Um vaso de absinto e outro de narciso, com tantas outras plantas corriqueiras não significam uma floricultura. O velho piano há muito estava mudo, agora sob uma luminária cheia de penumbra – Miguel até cogitou ensaiar algumas notas. Do teto alto pendia um lustre empenhado em iluminar com sobriedade o ambiente. Lá dentro, escolheram a mesa do fundo, no mais deserto dos desertos.
– Dois chopes, por favor – disse Miguel ao garçom que andava devagar. – E uma porção de provolone – estava seguro de que não desagradaria Eulália.
– Pra mim você traz um conhaque também – acrescentou ela.
O garçom se retirou ensaiando uma cerimônia que pouco dominava. Ao menos era bem intencionado, o rapaz.
O piso refletia a imagem do abajur, cuja projeção por vezes lembrava um chapéu mexicano. A cozinha espalhava um aroma que acendia até o apetite mais descuidado. A provocação era explícita. Resistir ou não resistir, eis a questão. Em silêncio, a nutricionista elaborou algumas breves teorias – Miguel não precisava ficar sabendo, porque o que contava era poder encontrar alguém para falar dos seus projetos audiovisuais.
– Um brinde aos sonhos – disse Miguel. Sua mão larga pegou o saleiro, e Eulália o lembrou de que o coração dele poderia se sentir meio infeliz com o excesso de sal na comida. Não adiantou. “Sal para todos!”
Miguel procurou pelos olhos de Eulália. Encontrou duas jabuticabas envoltas numa olheira leve.
– Estava pensando num jeito de criar um roteiro, acho que dá samba – disse Miguel, repetindo o antigo jargão empregado para dizer que uma ideia era promissora.
– A minha vida daria um filme. Só não sei se daria samba – Eulália gargalhou com certo recato calculado. Discretamente olhou para um casal que acabava de entrar. O homem vestia roupas típicas da África, e falava com um sotaque intenso, exigindo o dobro de atenção da mulher que o acompanhava.
– Eu pensei no início da história para o meu roteiro. Aí a gente vai criando juntos, pensamento livre, só não vale violência – o que acha da ideia? – disse Miguel, e esperou que Eulália retornasse para a cadeira. Para onde diabos os pensamentos a teriam levado? De novo, ela se deu conta de que Miguel mantinha o antigo cuidado de evitar certas palavras, convicto de que elas poderiam dar azar.
– O que foi que você disse? Eu, criando um roteiro?! – Eulália arregalou os olhos e deu risada, talvez de si mesma. Ela buscava, sim, um novo desafio, mas não desejava nada tão desafiante que confrontasse a sua pouca habilidade com a ficção. Miguel começou.
– O Garcia estava entediado. Resolveu fazer uma viagem – pronto, inventei o primeiro personagem, continua daí – disse.
– Viagem rápida? – disse Eulália, tentando entrar na história iniciada por Miguel.
– Não. Viagem longa. Dezesseis horas em cima de uma estrada de ferro.
– Dezesseis horas?! Mas ele ainda aguenta? Você quer matar o seu personagem logo no início? – Eulália estava surpresa com os rumos daquela ficção.
– Ele gosta de viajar, não gosta?
– Sim, o Garcia gosta de viajar. Mas 16 horas dentro de um trem não é muito?
– Porque “muito”?
– Não faz muito tempo que ele chegou da Europa – Eulália queria contribuir com a história, sem rumo e sem destino, iniciada por Miguel e agora construída a quatro mãos.
– Tudo bem, mas pense: o Garcia chegou da Europa, mas não está se encontrando no Brasil. Quer viajar de novo. O que ele estava fazendo na Europa, afinal?
– Me deixa pensar, olha a encrenca que você me coloca, Miguel! – disse Eulália. Você pensa e fala rápido desse jeito por causa daquele seu antigo medo de ficar mudo?
– Não reclama, é uma encrenca boa. Brincar de criar. Semideuses: é isso que nós somos.
– Ele foi trabalhar por lá. As coisas estavam muito difíceis, e ele desistiu do Brasil – prosseguiu Eulália.
– Vamos colocar o personagem mudo e infeliz na Europa – vai dar samba.
– Isso. Era mudo porque não falava o idioma, embora fosse comunicativo.
– E infeliz porque a empresa onde trabalhava era um inferno. Pior ainda, ele não tinha dia certo de descanso, nem horário certo de trabalho.
– É, você quer mesmo matar o personagem, que maldade, Miguel – Eulália sorriu, balançando a cabeça.
– Não, eu até gosto dele. É que se não tiver conflito, às vezes internos, não tem história – respondeu Miguel.
– Conflito... Conflito... É isso, conflito – refletiu Eulália, colocando em exposição na tela da sua mente os seus conflitos pessoais. Juntos, dariam um filme. Uma série, talvez.
– Pedimos mais um chope? – disse Miguel.
– Você também precisa de mais um? – Eulália mantinha o controle em respeito ao medo que sentia de agulha e de qualquer objeto pontiagudo, objetos comuns em hospitais.
– Não sei. Acho que preciso de mais um. Acho que hoje é dia de lavar roupa suja lá dentro – respondeu Miguel.
– Lavar roupa suja é bom. Dá trabalho, mas ela fica limpa.
– Fica limpa? Nem sempre. Minha máquina de lavar está preguiçosa, não lava direito – disse Miguel.
– Porque não manda pro conserto? – respondeu Eulália.
– Conserto? Trinta anos de terapia? Talvez isso ajude.
– Pelo menos tira a sujeira mais grossa – disse Eulália.
– É, tenho sujeira velha. Uma alma com sujeira bem antiga, sabe?
– Pelo menos o chope e a vodka amolecem. É bom deixar de molho – disse Eulália.
– Claro. Mas até o molho já está velho. É mais uma camada de sujeira, minha amiga.
– Eu sei. Eu sei. E sujeira pesa – disse Eulália.
– Tem sujeira que pesa e cheira mal.
– Garçom, dois chopes – gritou Miguel, estalando o dedo.
Engoliram a bebida, uma seiva dourada recoberta por uma grossa camada de neve. Pediram a conta e foram embora, do mesmo jeito que se encontraram horas atrás. Não retomaram a criação do roteiro. Foram viver novos capítulos. ≡
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